23/11/2015

elogio

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas
Elogio da mentira

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Imagine um romance policial
reunindo a agilidade
do gênero à qualidade
dos bons escritores.
Patrícia Melo
imaginou primeiro
e publicou
Elogio da mentira.
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O título do livro tanto se presta à promoção comercial de um produto destinado ao grande público, quan­to a provocar a sensibilidade do leitor mais exigente. Daí ser tomado de empréstimo para intitular o artigo. Elogio da men­tira, além de sintetizar o motivo central do romance, assume um deliberado parentesco com a obra clássica de Erasmo, Elogio da loucura.

A partir daí, fica-se atento para os jogos da autora, para a intertextualidade, ou o constante diálogo com obras de outros escritores, ora tomando emprestado uma idéia, ora uma expressão.

Patrícia Melo estreou em 1994, pela Cia. das Letras, com Acqua toffana, para lançar no ano seguinte O matador, já traduzido e publicado em oito países.

Mas não pense o leitor menos informado que ela é uma espécie de Paulo Coelho. A semelhança entre ambos fica apenas na capacidade de atingir o grande público brasileiro e de fazer boas vendas no exterior. Esta escritora fascinante consegue uma coisa rara: aliar a qualidade da narrativa às tramas de boa aceitação por um público mais amplo.


Sua principal arma é o texto conciso, objetivo e poderoso. É verdade que a secura informativa de um roteiro, que caracteriza sua narrativa, pouco cede espaço à poesia cotidiana que pode ser desentranhada das palavras. Ela conta suas histórias com determinação, com tal gana de contar que não deixa espaço para jogar com o indizível da linguagem.


Mas não podemos exigir tanto de uma autora jovem. Um García Márquez é capaz de transitar entre a objetividade da narrativa, com denso poder de informação, e o mergulho pelas camadas inexploradas do discurso. Patrícia Mello parece ter tudo para um dia chegar perto, se não ceder ao apelo da acomodação.

Elogio da mentira é concebido como um romance policial. Sua trama, cheia de peripécias que deixam o leitor ansioso, segue o figurino dos clássicos do gênero. Cada página do livro reserva uma surpresa e promete novas situações ainda mais inesperadas. Desafiando a inteligência do leitor, a história segue o seu curso sem cair na previsibilidade. A tensão vai crescendo a cada capítulo até explodir, brotar a derradeira surpresa.

O começo de tudo é um caso de amor, onde o desejo conduz à paixão e aproxima o protagonista de uma mulher que planeja matar o marido com uma serpente venenosa. José Guber, um obscuro autor de livros feitos por encomenda para coleções populares, se vê enredado no perigoso projeto de Fúlvia.
Até conhecer a atraente bióloga e criadora de animais peçonhentos, as preocupações de Guber se limitavam a resumir o roteiro do livro a ser entregue até o fim do mês, para fazer jus ao salário na editora.

“Quem quer saber de culpa e arrependimento? Que­remos ação. Sangue. Violência.” Curto e grosso, o editor joga no lixo o roteiro projetado e exige uma outra história: “Um romance policial precisa de um cadáver, e quanto mais morto ele estiver, melhor. E não pode ser um cadáver qualquer. Como vamos despertar o sentimento de vingança nos leitores matando uma velha sarnenta e indesejável? Se uma velha dessas morre, o povo aplaude.”

De escritor medíocre de romances policiais, José Guber passa a cúmplice de homicídio. Fúlvia foi atraída pelo seu engenho de inventar crimes desvendáveis e, na cama, celebra o prazer dos amantes relembrando os assassinatos narrados por Guber. Mas ele confessa que os melhores crimes foram copiados de autores famosos. Copiava, imitava, copiava, sem culpa, Edgard Alan Poe ou outro grande escritor qualquer. Ora, estava até prestando um serviço aos leitores destes livretos vendidos em bancas de revista. Assim, eles leriam trechos de grandes obras. De que outra forma teriam acesso a Dostoiévski, Zola e outros mais?

Mas nem sempre Guber conseguia copiar de forma convincente, sua colcha de retalhos. Copiando um pedaço daqui e outro dali, às vezes, não dava em nada. Despedido, terminou substituindo um autor de livros de auto-ajuda, tipo Laís Ribeiro e outras bugigangas. 

Chegou a pensar em trabalhar numa igreja da mídia, mas nem sempre se encontra uma boa vaga de bispo disponível. Como sempre há um trouxa interessado em cultivar sua inteligência emocional, ou em desenvolver suas excelentes potencialidades, Guber arregaçou as mangas e estourou na praça, sob o pseudônimo de João Aroeira, com livros como Dê uma mão a você mesmo, Dicionário simbiótico do sucesso profissional e, depois, Dicionário simbiótico da saúde.

Não conseguiu uma vaga de bispo, mas ganhou muito dinheiro com seus livros e com o hipotético Centro Universalis, até chegar a um projeto mais ambicioso: ensinar a humanidade a falar com Deus. Em Conversando com o criador,  Guber ganhou poderes transcendentais de magos tão respeitáveis como Paulo Coelho.

Mas enquanto tudo isto acontece e, por conta e risco da sua imaginação, o leitor liga as peripécias de Guber a fatos e pessoas reais, as tramas policialescas e amorosas do livro vão se enredando de tal forma que qualquer pista que se dê aqui ficaria perdida em meio aos acontecimentos.

Cabe ao leitor conferir. Elogio da mentira, de Patrícia Melo, é um livro que se lê com gula, tais as seduções que ela sabe armar.

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Elogio da mentira. Artigo crítico sobre o livro Elogio da mentira de Patrícia Melo. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 22 jun. 98, p. 7.