22/11/2015

quiroga, pioneiro

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Quiroga, pioneiro do realismo fantástico

            A partir de autores como Borges e Cortázar, o conto produzido nos países americanos de língua espanhola ganhou dimensão internacional. O êxito destes escritores no exterior contribuiu para a consolidação do prestígio da literatura hispano-americana. Mas o trajeto percorrido por tais nomes, inclusive a fixação de residência na Europa, como forma de ressonância da obra literária, foi pioneiramente tentado pelo escritor uruguaio Horácio Quiroga (1878-1937), cuja vida intelectual está muito ligada à Argentina.
            Desconhecido do público brasileiro, Quiroga é apontado como uma figura central do conto de língua espanhola no nosso continente. A sua redescoberta nos países vizinhos deve-se essencialmente à condição de artífice da narrativa, desenvolvendo o sentido de modernidade instaurado por autores como Poe e Baudelaire.
            Os nove contos que constituem Vozes da selva, selecionados por Pablo Rocca, foram traduzidos no Brasil por um exímio artesão do conto de língua portuguesa, o gaúcho Sérgio Faraco. Umbilicalmente ligado à literatura dos países do continente sul, especialmente a uruguaia, Faraco é capaz de preservar, nas suas traduções, a integridade do processo criativo no plano da fabulação e da linguagem de um autor como Quiroga.      Desde a primeira narrativa do livro, “A deriva”, o leitor percebe que está diante de um contista que retoma o gênero para transformar cada peça composta numa obra autônoma. Ou melhor, o conto não mais é admitido como fragmento de uma narrativa maior, mas construído como um protótipo conciso do universo. A organicidade da composição buscada neste processo construtivo é responsável por características que Quiroga insere e define como intensidade, concisão e concentração. Estas três palavras, integrantes do vocabulário teórico do contista, são repetidas e redefinidas pelos estudiosos para caracterizar o conto moderno.
            A brevidade do texto e a unidade da ação preparam e asseguram a tensão da obra, como já ensinava Poe, ao compor poemas e contos a partir de um projeto tão rigoroso como o seguido pelo engenheiro ao trabalhar com cálculos e estruturas. Quiroga não admite o arrebatamento do contista pelo personagem ou pela deriva da trama, mas exige a vigilância do autor, como demiurgo e construtor deste universo ficcional. O controle da ação não lhe escapa e os resultados obtidos são previstos pela técnica narrativa.
            Mesmo em contos publicados no começo do século, Quiroga apresenta o rigor do artesão consciente. A crítica hispano-americana já relacionou este traço do contista às atividades do homem, que trabalhou como inventor e mecânico. Dentro deste quadro de equivalências, a domínio da mecânica e o encanto do invento estão presentes em todos os nove contos de Vozes da selva.
            Júlio Cortázar, no ensaio “Do conto breve e seus arredores”, muito difundido no Brasil desde que foi traduzido no livro Valise de cronópio, parte do processo de construção de Horácio Quiroga para falar da sua própria técnica e para formular uma teoria do conto. O seu conceito de esfericidade pode ser encontrado na exigência de unidade instaurada por Quiroga ao construir o conto como se este constituísse um microcosmo. Um modelo conciso e acabado de universo.
            Não é demais afirmar que a leitura dos contos de Quiroga, além do prazer proporcionado pelas suas histórias, serve como uma verdadeira aula prática de técnica literária. Seus contos podem ser tomados, como de fato o foram por muitos escritores hispano-americanos do nosso século, como materiais de laboratório de criação.
            Mecânico e inventor, Quiroga não limitou sua temática ao que chamava de “contos do mato”, transfigurando a vivência pessoal em experiência social, mas inaugurou na narrativa de temática urbana o realismo fantástico. Foi na década de vinte, como demonstram os dois últimos contos do livro, “O espectro” e “Uma noite no Éden”, que Horácio Quiroga, ao se deslocar da conhecida ambientação rural para o mundo urbano, concebeu a realidade deste mundo como ultrapassando os umbrais do realismo lógico. Daí o seu realismo fantástico, vertente literária que, coincidentemente, vai se constituir no mais rico filão da narrativa dos países americanos de língua espanhola. Borges, Garcia Marques, Cortázar...
            Dos nove contos escolhidos, entre os vários livros do autor para compor Vozes da selva, sete são de temática regional. São contos do mato, como dizia Quiroga. Mas este contista ultrapassa o projeto dos regionalistas surgidos depois.
            Convém observar que as suas primeiras publicações, posteriormente reunidas em livro, incluem contos, poemas e artigos aparecidos entre 1897 e 1903. Este é o chamado período modernista de Quiroga, quando o autor procura absorver o conceito de modernidade, ainda distante do trabalho dos escritores do nosso continente. É a partir daí, talvez, que ele se embebe do espírito decadentista responsável pelo fim semitrágico dos seus contos. O decadentismo tão intimamente ajustado ao ambiente regional. Mas o seu regionalismo não se confunde com o folclórico, com o pitoresco ingênuo. Deste já, ele percebe: quanto mais regional mais universal; e caminha firme nesta direção. Isto se reflete no seu léxico. Ao contrário de tentar criar a ambientação com um vocabulário regionalista, desconhecido e inacessível ao leitor de outros lugares, Quiroga também usa de um artifício: a técnica, buscando uma ou duas expressões cuidadosamente escolhidas, ou um torneio frasal que, sem obscurecer o sentido do texto, inserem o leitor no ambiente pretendido.
            A tentação de qualquer escritor regionalista é ceder ao rico acervo lexical do ambiente, produzindo o texto numa língua ou num dialeto desconhecidos do leitor. Já o artista que enfrenta seu ofício com técnica e criatividade, encontra outras soluções: consegue condensar o pitoresco, o típico, o regional, em poucos elementos deslocados no contexto da sua própria linguagem. É este deslocamento que também remete o leitor a uma outra realidade – a realidade da narrativa.
            Por tudo isto é que repito: ler Horácio Quiroga é motivo de prazer e deleite para o leitor comum; fonte de aprendizagem e percepção crítica para o escritor ou para o estudioso.

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Quiroga, pioneiro do realismo fantástico. Artigo crítico sobre o livro Vozes da selva; nove contos escolhidos de Horácio Quiroga. Tradução de Sérgio Faraco. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1994. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 28 jul. 97, p. 7.

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