Um inventor de vidas e lugares
_____________________________________
No
livro
Jaú dos bois,
Aleilton
Fonseca
reúne
segredos
do
contador
de
histórias
e
artifícios
da
boa escrita.
_____________________________________
Formas literárias curtas, como o poema e
o conto, são frequentemente escolhidas por parecerem mais fáceis de se
escrever. Na verdade, elas são menos "trabalhosas". Um poema de
catorze versos ou um conto de uma ou duas páginas exigem um volume de trabalho
menor do que um romance de duzentas páginas. Mas isto não quer dizer que as
formas menores sejam menos fáceis de executar.
Compare estas atividades com o exercício
de pintar uma paisagem na superfície de uma porta e de pintar a mesma paisagem
numa caixa de fósforos. A primeira exigiria mais "trabalho", mais
tinta, mais esforço físico, sem ser, necessariamente, mais difícil do que o
segunda tarefa. Neste caso, o trabalho só poderia ser medido comparando dois
valores diversos: quantidade e qualidade.
Quem imagina que o trabalho de um neurocirurgião, ou de um ourives, é mais fácil do que o trabalho de um carpinteiro, ou de um concreteiro de vigas, também preferirá escrever contos e poemas em vez de romances. É o que ocorre com frequência; centenas de concreteiros publicam seus livros usando as formas que lhes parecem menos trabalhosas.
Poucos são os que escolhem as formas
curtas por inequívoco pendor pelo trabalho concentrado, denso, preciso e
exigente. Entre estes estão os mestres do conto e do poema de ontem de hoje.
Guimarães Rosa trabalhou as narrativas de Sagarana
por cerca de vinte anos. Bilac exigia para o verso a construção do ourives.
Pessoa rescreveu os seus poemas por trinta anos a fio, a procura de uma forma
menos transitória. Torga morreu com mais de oitenta anos rescrevendo os contos
da juventude, retocando aqui, tirando ali, acrescentando adiante.
Mas há também escritores estreantes que começam com
qualidade, tomando por base a análise da experiência dos autores que lhes
antecederam. Eles lêem, relêem, deslêem aqueles que vieram primeiro, tirando
lições e vencendo etapas.
É o caso de Aleilton
Fonseca, poeta e ensaísta que faz sua primeira incursão pelo conto em Jaú dos bois. A obra foi vencedora do
Prêmio de Literatura 1996 da Fundação Cultural do Estado da Bahia e publicada
em co-edição com a Relume Dumará.
Trata-se de um livro
pequeno; são apenas 52 páginas compreendendo cinco narrativas. Quatro delas,
"O avô e o rio", "O sorriso de estrela", "O casal
vizinho" e a última, que dá título ao volume, estão ligadas por uma apelo
unitário: a marca telúrica. Pessoas, costumes e paisagens da terra — de uma
região que pode ser a do autor como pode ser também a terra inventada pelo
desejo de qualquer leitor — compõem o suporte destas quatro histórias. Embora
se passem em lugares diversos, a atmosfera é a mesma; o clima ameno de sonho e
imaginação perpetuados na memória. Já o conto "Amigos, amigos", por
ordem de inserção, o quarto do livro, é uma história transcorrida mais no
interior da alma e menos naquele interior do país que todos estamos perdendo; e
resgatando na ficção.
A unidade de espaço imaginário criada pelas quatro
narrativas do livro ambientadas no interior estabelece uma cumplicidade entre
leitor e narrador. Isto faz com que os novos acontecimentos, que nos aguardam a
partir da leitura da primeira história, tenham, ao mesmo tempo, sabor de
reencontro e de surpresa.
Os personagens dos contos de Jaú dos bois são gente de papel, com sangue de tinta e ossatura
imaginária, gente saída da ficção que mais parece feita de carne e osso, porque
fala, anda e sente com verdadeira naturalidade. Perplexo, o leitor descobre que
as figuras que saltam das palavras escritas nestes contos de Aleilton Fonseca
têm alma. Seus sentimentos e emoções ultrapassam o espaço ficcional e invadem o
espaço civil do leitor, derramando uma mesma nuvem de humanidade e solidária
maneira de construir a vida.
O contraditório disso tudo é que entramos no mundo
ficcional destas histórias, conduzidos pela força de verdade e existência do
fabulado, ao mesmo tempo em que somos tocados pela marca indelével do trabalho
literário. De um lado vivemos a vida dos personagens e, do outro, percebemos o
apuro da construção, o vigiar constante da trama, do texto, onde cada palavra é
pesada, medida e lançada ao espaço da ficção plena de sentido.
A prosa de Aleilton não se esparrama pelo papel em branco
como planta do mato; ela é cuidada, cultivada; cada ramo segue a direção
pretendida pelo jardineiro; cada folha nasce no lugar preciso para formar um
todo harmonioso e revelador. As personagens colhidas em pleno desempenho dos
seus papéis, papéis às vezes rudes, são transpostas da terra agreste de onde
brotaram e inseridas neste espaço cultivado, onde o jardineiro quer conduzir o
movimento do nosso olhar.
O contista Aleilton Fonseca sabe juntar a profusão de
sentimentos vivos do seu universo ficcional num espaço definido e preciso: o
espaço da escrita, pondo as palavras a serviço do seu dizer. Nenhum gesto de
personagem se perde dos olhos, nenhuma palavra se perde do ouvido, tudo conduz
ao ponto indicado pela mão do escritor.
Ao publicar um livro avaro, breve, espremido no tamanho,
o autor teve a preocupação de se revelar contista, demonstrando o domínio da
escrita. Por isso ele é lido com vivo interesse por qualquer leitor; e com
prazerosa admiração pelo leitor mais exigente e atento.
A definição mais
adequada que encontro para a singular reunião de contos de Aleilton Fonseca é
esta: um pequeno grande livro.
________________________
Um inventor de vidas e
lugares. Artigo crítico sobre o livro Jaú
dos Bois de Aleilton Fonseca. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 27 jul. 98, p. 7.