Criação
e Crítica
Embora
a tradição de base teórica insista em estabelecer limites e diferenças entre os
modernos gêneros literários, a prática, insubmissa, recusa todos os rótulos e
modelos prévios. Quando a poética clássica impunha a constituição de três
grandes gêneros – o lírico, o épico e o dramático –, a modernidade propôs novas
divisões, deslocando fronteiras. Para restabelecê-las adiante. O que foi um
fator de ruptura, uma força de propulsão, se transforma numa rede de
acomodação. Os núcleos dinâmicos, responsáveis pelas mudanças, quando se
estabelecem, depois de exaurir o seu próprio potencial renovador, se
cristalizam como normas apriorísticas; a exemplo dos homens, outrora rebeldes,
nos anos esquecidos, e depois conservadores. O destino de toda forma
revolucionária, ao ser incorporada pelo espaço de aceitação pacífica, é se
transformar em fôrma, assumindo o papel contra o qual se fez forma e se fez
revolucionária.
O
bicho-homem não está muito longe do bicho-caramujo que, para viver, preserva o
seu casulo, o seu búzio, ou a sua concha. Temos medo do bicho que seremos
quando mais não somos.
Por
outro lado, tudo que é novo, que é desconhecido, para ser conhecido precisa se
parecer com o velho, com o visto. Por isto o homem identifica, classifica.
Não
por acaso, ainda hoje, somos obrigados a enquadrar a criação em módulos: um
texto deve ser uma crônica, um poema, um conto, uma novela ou um romance. Deve
ser qualquer coisa. Porque não lhe basta ser, apenas, texto.
O
escritor é, provavelmente, aquele que menos sabe dos limites que separam os
domínios da Literatura em gêneros, sub-gêneros e congêneres. A política de
fronteiras, com suas contendas de demarcações e tratados, é reservada à
burocracia abstrata, à diplomacia da crítica universitária.
Porque
todo crítico é muito cioso. Sempre ocupado em inventar o trabalho a fazer:
classificações, periodizações, demarcações de fronteiras, enfim. O crítico é o
verdadeiro anti-funcionário público: não negligencia, nunca, durante o
expediente. Está sempre alerta, atento, para ver se descobre, se inventa, novas
tarefas por fazer – remexendo gavetas e arquivos empoeirados.
Entre
as várias funções da crítica, deste nosso ofício parasita, vampiresco, como
diria Ducasse-Lautréamont-Maldoror, desta gigolotria de literato, como diria
Amado-Berrodágua-Vadinho, uma se destaca das demais: dar emprego aos críticos
na Universidade. Esta é talvez a função responsável pela maior parte dos
ensaios e tratados que conhecemos, e dos que não queremos conhecer.
Convém
não esquecer as descobertas de Freud. Dissimulada em blague, há uma vera
verdade na afirmativa chistosa.
É
preciso, sempre, descobrir novas propostas, novos problemas, para que se
justifique a existência dos críticos de hoje e, principalmente, de amanhã. Mas
o grave é que estes funcionários da Literatura (Oh grande sinecura! Até quando
duras, doçura?), mas o mais grave entrave é que estes funcionários da
Literatura se atribuem o papel de legisladores, disseminando suas normas e
mandamentos, como princípios áureos dos otários. Vários. No ABC da
Literatura, Ezra Pound – que além de poeta e louco, juízo também tinha um
pouco – monta um diagnóstico do processo de canonização das formas pela
“tradição”.
É
ele quem fala:
“De
modo geral, pode-se dizer que a deliquescência do ensino em qualquer arte
ocorre da seguinte maneira:
I - Um
mestre inventa uma bossa, ou processo para realizar uma função particular, ou
uma série limitada de funções.
Os
alunos adotam a bossa. Muitos deles usam-na com menos talento que o mestre. O
próximo gênio pode aperfeiçoá-la ou trocá-la por algo mais apropriado aos seus
objetivos.
II - Aí
aparece o pedagogo ou o teórico engomado e proclama aquela bossa como uma lei
ou norma.
III -
Então a burocracia se forma e um secretariado de cabeças-de-alfinete ataca todo
novo gênio ou toda nova forma de inventividade por não obedecer à lei e por
perceber algo que o secretariado não percebe.
Os
grandes sábios, quase sempre, não tomam conhecimento das tolices da classe
profes-soral.”
Evidentemente,
estas prudentes (?) reflexões de Pound não invalidam a contribuição dos
estudiosos funcionários das letras, ranhetas; mas aler-tam para o papel que
lhes cabe. O crítico é o construtor da teoria viva, é aquele a quem cabe
explicitar a metalinguagem que está pressuposta em todo texto de criação. Seu
trabalho é desentranhar da obra os materiais da teoria, construída
implicitamente pelo artista.
Qualquer
sistema teórico, que não venha do trabalho de arquiteto do artista e do
trabalho de construtor do crítico, é ilegítimo, porque assim como não cabe ao
crítico reescrever o significado intrínseco da obra, não lhe cabe também
reescrever a metalinguagem implícita no discurso do escritor.
Embora
nos anos setenta muitos de nós acreditássemos que este conceito de crítica
estivesse superado pela prática de uma crítica-escritura, por uma crítica
criativa que ganhava foros de autonomia com relação à obra literária, o
distanciamento de quase trinta anos depois permite corrigir o viés do deslumbre
causado pelas primeiras cintilações do pensamento teórico pós-moderno. É
verdade que ainda hoje a moda impõe extravagâncias aos corifeus da novidade
feérica, mas trinta anos é muito tempo... e aqueles que acreditam pertencer ao
seu próprio momento histórico, mesmo sem trejeitos pós-modernos, podem prescindir
de escrever outras paulicéias desvairadas. Mário radicali-zou e abriu largas
veredas. O caminho de roça riscado por cada pé que vem depois é mera
redundância.
Por
isso repito: não cabe ao crítico reescrever o significado intrínseco da obra
nem a poética presente como camada do palimpsesto. Cabe, sim, iluminar as
veredas do não consciente, tarefa das mais nobres, que exige, antes de mais
nada, que se tenha nos olhos o fogo. Que ilumina e atrai.
De
certa forma, a rigidez dos limites entre determinadas modalidades de textos
literários foi estabelecida, ao longo da história, mais pelos críticos
legisladores do que pelos próprios artistas criadores. Não se pode negar a
influência das classificações impostas pela crítica às gerações seguintes, das
quais surgem os novos escritores. Daí a responsabilidade do crítico, do
professor, deste preclaro protozoário que Pound chama de pedagogo engomado.
Seu trabalho pode contribuir tanto para melhorar a literatura do seu povo
quanto para reduzi-la a uma cumpridora de tarefas e normas.
Dentro
desse quadro, paralela à distinção dos gêneros e sub-gêneros literários,
subsiste, viva, a interação destas modalidades de escrita. Tão importante
quanto a compreensão dos limites entre as formas, é o reconhecimento da sua
transgressão; porque a Literatura transforma as fronteiras em isoglossas
móveis, sem-limites das terras do sem-fim.
Já
se disse, em muito lugar, e se não se disse, digo aqui, com jeito de quem não
diz, que a epopéia e o romance estão ligados por uma linha de tempo e de
tempero. Como o pai está ligado ao filho. Ambas as narrativas encerram uma
visão de mundo, uma estruturação da realidade, uma espécie de construção de um
mundo paralelo, que se revela a cada passo da leitura, aos poucos, como o
próprio mundo exterior se revela ao homem. Mas não sei se já se disse que o
conto e o poema estão próximos. Como dois irmãos distantes.
Todo
conto é um recorte da realidade, uma seleção de aspectos que, sendo
particulares, abrem as portas do geral, valendo como símbolos de alguma coisa
bem maior.
A
reestruturação do real no conto não se dá numa ordem ontológica, como pretende
repre-sentá-la a medição cronológica, mas segundo uma sequência onírica,
metonímica, onde o refazer da parte representa a mudança do todo. A
constituição de um significado novo, embora parcial, contém a percepção de um
significado não dito.
Sob
este aspecto, o conto seria uma anti-narrativa, porque seu verdadeiro sentido,
sua essência, é inenarrável. Ou ainda, é uma meta narrativa. O que está além da
narrativa. E o que não narra a narrativa.
Um
conto que se esgota nos limites da história que conta, não é um conto, mas um
episódio desgarrado de uma ficção mais ampla, que não se realizou na escrita,
não se escreveu, nem nunca se escreverá. Porque todo texto de criação, não
importam suas dimensões, é um mundo em si, micro-cosmo, com suas leis, seus
seres, sua própria organização. Se a obra não destrói o mundo para construir um
outro mundo sobre os destroços cotidianos – que refaz a realidade estabelecida
nos sem-limites do espaço de transgressão –, ela não é uma obra de arte. É um
exercício formal, uma maneira de estilo, um discurso conceitual, ou outra coisa
qualquer nos domínios da retórica. Toda arte é radical. E ser radical, segundo
Marx (fora da moda e do muro, mas bem melhor de se ler, sem os figurinos ou
catecismos da burocracia ditatorial), é tomar as coisas pela raiz. Por isso,
ela subverte a organização do universo, sublinha sua crise, como caminho para
superá-la.
Um
conto não vale pelo que conta. Mas pelo que não conta. Pelo que se projeta no
silêncio da narrativa e fica. É precisamente aquilo que se instala, e habita
para sempre a sensibilidade e a inteligência do leitor, que é a essência do
conto. E essa essência nunca é dita, porque não cabe nos limites de umas poucas
folhas de papel, embora, paradoxalmente, caiba, comprimida – melhor:
adormecida, ou encantada – nos parcos signos poéticos contidos nessas folhas.
Se
no romance, pouco a pouco, o autor constrói a essência do texto, no conto, ela
germina no leito do leitor, rompe: brusca, como somente sabe romper uma semente
no óvulo fértil, depois do encontro e do encanto. Se o romance, lento, se tece
na eloquência do verbo ou no desenrolar gradual da trama, o conto, ágil, se
projeta numa outra eloquência – a do silêncio.
O
silêncio de depois do ato desentranha o sentido desse ato de leitura.
E
tudo isso não faz o poema? Não é o verso a síntese da sentença?
O
poema não ordena e aflora apenas o que foi dito, mas também o que nunca se
dirá, o indizível que precisa ser dito. O poema fala por si, pelo autor, e pelo
Outro, pelo leitor. Eles encontram, revelado, nas insinuações do texto, o
segredo defendido. O poema sabe, e diz, o segredo, sem que esse seja violado.
Por isso o poema é segredo, claro enigma.
E
tudo isso não faz o conto? Não é seu encanto a síntese da sentença?
Distante
da velha anedota ou da crônica do astuciado, seu berço primitivo, o conto quer
para si o condão do verso.
Aquilo
que o indivíduo escande e esconde para além do consciente é revelado pelo
poema. Revelado ao leitor, decifrador, e a quem cifra e, às vezes, decifra, o
autor. Mas a revelação do poema não dói,
simula a dor. O dito permanece entre o não dito. Não se trata de uma revelação
que trai o segredo defendido pela consciência, mas de uma esfinge que vela, ou
que finge, quando revela. Um claro-escuro. Uma verdade em vigília, que se
mostra apenas o suficiente para a intuição. Que não se exibe. Por isso, o canto
e o conto podem aflorar e ordenar não apenas o que foi dito, mas, principalmente,
o que não se permite dizer.
Espelho
de encantado, duende ou bruxo, que reflete não só o que se esconde por trás da
face do inventor, como de todos que nele se miram: eis o texto.
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Criação
e crítica. Artigo crítico-teórico sobre o fenômeno literário. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,
11 mai. 98, p. 7. Parte II, 18 mai. 98, p. 7.