23/11/2015

criação e crítica

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Criação e Crítica

Embora a tradição de base teórica insista em estabelecer limites e diferenças entre os modernos gêneros literários, a prática, insubmissa, recusa todos os rótulos e modelos prévios. Quando a poética clássica impunha a constituição de três grandes gêneros – o lírico, o épico e o dramático –, a modernidade propôs novas divisões, deslocando fronteiras. Para restabelecê-las adiante. O que foi um fator de ruptura, uma força de propulsão, se transforma numa rede de acomodação. Os núcleos dinâmicos, responsáveis pelas mudanças, quando se estabelecem, depois de exaurir o seu próprio potencial renovador, se cristalizam como normas apriorísticas; a exemplo dos homens, outrora rebeldes, nos anos esquecidos, e depois conservadores. O destino de toda forma revolucionária, ao ser incorporada pelo espaço de aceitação pacífica, é se transformar em fôrma, assumindo o papel contra o qual se fez forma e se fez revolucionária.
O bicho-homem não está muito longe do bicho-caramujo que, para viver, preserva o seu casulo, o seu búzio, ou a sua concha. Temos medo do bicho que seremos quando mais não somos.
Por outro lado, tudo que é novo, que é desconhecido, para ser conhecido precisa se parecer com o velho, com o visto. Por isto o homem identifica, classifica.
Não por acaso, ainda hoje, somos obrigados a enquadrar a criação em módulos: um texto deve ser uma crônica, um poema, um conto, uma novela ou um romance. Deve ser qualquer coisa. Porque não lhe basta ser, apenas, texto.
O escritor é, provavelmente, aquele que me­nos sabe dos limites que separam os domínios da Literatura em gêneros, sub-gêneros e congêneres. A política de fronteiras, com suas contendas de demarcações e tratados, é reservada à burocracia abstrata, à diplomacia da crítica universitária.
Porque todo crítico é muito cioso. Sempre ocupado em inventar o trabalho a fazer: classificações, periodizações, demarcações de fronteiras, enfim. O crítico é o verdadeiro anti-funcionário público: não negligencia, nunca, durante o expediente. Está sempre alerta, atento, para ver se descobre, se inventa, novas tarefas por fazer – remexendo gavetas e arquivos empoeirados.
Entre as várias funções da crítica, deste nosso ofício parasita, vampiresco, como diria Ducasse-Lautréamont-Maldoror, desta gigolotria de literato, como diria Amado-Berro­dágua-Vadinho, uma se destaca das demais: dar emprego aos críticos na Universidade. Esta é talvez a função responsável pela maior parte dos ensaios e tratados que conhecemos, e dos que não queremos conhecer.
Convém não esquecer as descobertas de Freud. Dissimulada em blague, há uma vera verdade na afirmativa chistosa.
É preciso, sempre, descobrir novas propostas, novos problemas, para que se justifique a existência dos críticos de hoje e, principalmente, de amanhã. Mas o grave é que estes funcionários da Literatura (Oh grande sinecura! Até quando duras, doçura?), mas o mais grave entrave é que estes funcionários da Literatura se atribuem o papel de legisladores, disseminando suas normas e mandamentos, como princípios áureos dos otários. Vários. No ABC da Literatura, Ezra Pound – que além de poeta e louco, juízo também tinha um pouco – monta um diagnóstico do processo de canonização das formas pela “tradição”.
É ele quem fala:
“De modo geral, pode-se dizer que a deliquescência do ensino em qualquer arte ocorre da seguinte maneira:
I - Um mestre inventa uma bossa, ou processo para realizar uma função particular, ou uma série limitada de funções.
Os alunos adotam a bossa. Muitos deles usam-na com menos talento que o mestre. O próximo gênio pode aperfeiçoá-la ou trocá-la por algo mais apropriado aos seus objetivos.
II - Aí aparece o pedagogo ou o teórico engomado e proclama aquela bossa como uma lei ou norma.
III - Então a burocracia se forma e um secretariado de cabeças-de-alfinete ataca todo novo gênio ou toda nova forma de inventividade por não obedecer à lei e por perceber algo que o secretariado não percebe.
Os grandes sábios, quase sempre, não tomam conhecimento das tolices da classe profes-soral.”
Evidentemente, estas prudentes (?) reflexões de Pound não invalidam a contribuição dos estudiosos funcionários das letras, ranhetas; mas aler-tam para o papel que lhes cabe. O crítico é o construtor da teoria viva, é aquele a quem cabe explicitar a metalinguagem que está pressuposta em todo texto de criação. Seu trabalho é desentranhar da obra os materiais da teoria, construída implicitamente pelo artista.
Qualquer sistema teórico, que não venha do trabalho de arquiteto do artista e do trabalho de construtor do crítico, é ilegítimo, porque assim como não cabe ao crítico reescrever o significado intrínseco da obra, não lhe cabe também reescrever a metalinguagem implícita no discurso do escritor.
Embora nos anos setenta muitos de nós acreditássemos que este conceito de crítica estivesse superado pela prática de uma crítica-escritura, por uma crítica criativa que ganhava foros de autonomia com relação à obra literária, o distanciamento de quase trinta anos depois permite corrigir o viés do deslumbre causado pelas primeiras cintilações do pensamento teórico pós-moderno. É verdade que ainda hoje a moda impõe extravagâncias aos corifeus da novidade feérica, mas trinta anos é muito tempo... e aqueles que acreditam pertencer ao seu próprio momento histórico, mesmo sem trejeitos pós-modernos, podem prescindir de escrever outras paulicéias desvairadas. Mário radicali-zou e abriu largas veredas. O caminho de roça riscado por cada pé que vem depois é mera redundância.
Por isso repito: não cabe ao crítico reescrever o significado intrínseco da obra nem a poética presente como camada do palimpsesto. Cabe, sim, iluminar as veredas do não consciente, tarefa das mais nobres, que exige, antes de mais nada, que se tenha nos olhos o fogo. Que ilumina e atrai.
De certa forma, a rigidez dos limites entre determinadas modalidades de textos literários foi estabelecida, ao longo da história, mais pelos críticos legisladores do que pelos próprios artistas criadores. Não se pode negar a influência das classificações impostas pela crítica às gerações seguintes, das quais surgem os novos escritores. Daí a responsabilidade do crítico, do professor, deste preclaro protozoário que Pound chama de pedagogo engomado. Seu trabalho pode contribuir tanto para melhorar a literatura do seu povo quanto para reduzi-la a uma cumpridora de tarefas e normas.
Dentro desse quadro, paralela à distinção dos gêneros e sub-gêneros literários, subsiste, viva, a interação destas modalidades de escrita. Tão importante quanto a compreensão dos limites entre as formas, é o reconhecimento da sua transgressão; porque a Literatura transforma as fronteiras em isoglossas móveis, sem-limites das terras do sem-fim.
Já se disse, em muito lugar, e se não se disse, digo aqui, com jeito de quem não diz, que a epopéia e o romance estão ligados por uma linha de tempo e de tempero. Como o pai está ligado ao filho. Ambas as narrativas encerram uma visão de mundo, uma estruturação da realidade, uma espécie de construção de um mundo paralelo, que se revela a cada passo da leitura, aos poucos, como o próprio mundo exterior se revela ao homem. Mas não sei se já se disse que o conto e o poema es­tão próximos. Como dois irmãos distantes.
Todo conto é um recorte da realidade, uma seleção de aspectos que, sendo particulares, abrem as portas do geral, valendo como símbolos de alguma coisa bem maior.
A reestruturação do real no conto não se dá numa ordem ontológica, como pretende repre-sentá-la a medição cronológica, mas segundo uma sequência onírica, metonímica, onde o refazer da parte representa a mudança do todo. A constituição de um significado novo, embora parcial, contém a percepção de um significado não dito.
Sob este aspecto, o conto seria uma anti-narrativa, porque seu verdadeiro sentido, sua essência, é inenarrável. Ou ainda, é uma meta narrativa. O que está além da narrativa. E o que não narra a narrativa.
Um conto que se esgota nos limites da história que conta, não é um conto, mas um episódio desgarrado de uma ficção mais ampla, que não se realizou na escrita, não se escreveu, nem nunca se escreverá. Porque todo texto de criação, não importam suas dimensões, é um mundo em si, micro-cosmo, com suas leis, seus seres, sua própria organização. Se a obra não destrói o mundo para construir um outro mundo sobre os destroços cotidianos – que refaz a realidade estabelecida nos sem-limites do espaço de transgressão –, ela não é uma obra de arte. É um exercício formal, uma maneira de estilo, um discurso conceitual, ou outra coisa qualquer nos domínios da retórica. Toda arte é radical. E ser radical, segundo Marx (fora da moda e do muro, mas bem melhor de se ler, sem os figurinos ou catecismos da burocracia ditatorial), é tomar as coisas pela raiz. Por isso, ela subverte a organização do universo, sublinha sua crise, como caminho para superá-la.
Um conto não vale pelo que conta. Mas pelo que não conta. Pelo que se projeta no silêncio da narrativa e fica. É precisamente aquilo que se instala, e habita para sempre a sensibilidade e a inteligência do leitor, que é a essência do conto. E essa essência nunca é dita, porque não cabe nos limites de umas poucas folhas de papel, embora, paradoxal­mente, caiba, comprimida – melhor: adormecida, ou encantada – nos parcos signos poéticos contidos nessas folhas.
Se no romance, pouco a pouco, o autor constrói a essência do texto, no conto, ela germina no leito do leitor, rompe: brusca, como somente sabe romper uma semente no óvulo fértil, depois do encontro e do encanto. Se o romance, lento, se tece na eloquência do verbo ou no desenrolar gradual da trama, o conto, ágil, se projeta numa outra eloquência – a do silêncio.
O silêncio de depois do ato desentranha o sentido desse ato de leitura.
E tudo isso não faz o poema? Não é o verso a síntese da sentença?
O poema não ordena e aflora apenas o que foi dito, mas também o que nunca se dirá, o indizível que precisa ser dito. O poema fala por si, pelo autor, e pelo Outro, pelo leitor. Eles encontram, revelado, nas insinuações do texto, o segredo defendido. O poema sabe, e diz, o segredo, sem que esse seja violado. Por isso o poema é segredo, claro enigma.
E tudo isso não faz o conto? Não é seu encanto a síntese da sentença?
Distante da velha anedota ou da crônica do astuciado, seu berço primitivo, o conto quer para si o condão do verso.
Aquilo que o indivíduo escande e esconde para além do consciente é revelado pelo poema. Revelado ao leitor, decifrador, e a quem cifra e, às vezes, decifra, o autor.  Mas a revelação do poema não dói, simula a dor. O dito permanece entre o não dito. Não se trata de uma revelação que trai o segredo defendido pela consciência, mas de uma esfinge que vela, ou que finge, quando revela. Um claro-escuro. Uma verdade em vigília, que se mostra apenas o suficiente para a intuição. Que não se exibe. Por isso, o canto e o conto podem aflorar e ordenar não apenas o que foi dito, mas, principalmente, o que não se permite dizer.
Espelho de encantado, duende ou bruxo, que reflete não só o que se esconde por trás da face do inventor, como de todos que nele se miram: eis o texto.

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Criação e crítica. Artigo crítico-teórico sobre o fenômeno literário. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 11 mai. 98, p. 7. Parte II, 18 mai. 98, p. 7.