O elo perdido com o leitor
O
leitor que busca no texto o prazer das descobertas, dos encontros inesperados e
dos reencontros; que sabe cumprimentar com igual atenção a alegria das
insignificantes banalidades do cotidiano e a surpresa de ver o que antes não
via, lerá mais de uma vez os contos de Aramis Ribeiro Costa em A assinatura perdida.
Trata-se de um escritor que marca a sua presença diante do leitor da
forma mais apropriada: através de um texto maduro e bem construído. Tendo
publicado seus livros anteriores com repercussão limitada à Bahia (salvo dois
títulos infantis lançados pela Ática), Aramis Ribeiro Costa chega ao mercado
nacional, numa bem cuidada edição da Iluminuras, com a qualificação necessária
para ocupar um lugar ao lado dos bons contistas que se afirmaram neste fim do
século.
A sua
matéria, transmudada em arte, é a vida, a vida com seus vícios, virtudes,
grandezas e misérias. A pequenez e a redenção dos homens. Sua linguagem,
contida e depurada, sugere a absorção atenta dos clássicos de todos os tempos,
brasileiros e estrangeiros. A naturalidade com que transita por entre os
artefatos e artifícios da construção ficcional revela o leitor e o aprendiz dos
narradores franceses e russos. Dos portugueses e brasileiros, especialmente de
um clássico da modernidade, Josué Montello, a quem o livro é dedicado.
Com
isso não se aponta dependência ou falta de originalidade, mas a retomada
consciente e inventiva de uma tradição afortunada. Aramis Ribeiro Costa é um
narrador que sabe construir seu texto e contar uma história bem engendrada. Há
um sensível equilíbrio entre o domínio da linguagem, ou a construção do texto
vernáculo, e a fabulação de um mundo paralelo. Um mundo inventado com tanta
arte que parece competir com o mundo real.
A
encruzilhada na qual derrapam alguns dos novos ficcionistas é o descompasso
entre a escrita e o invento. Autores como o paulista João Carrascosa (premiado
com Hotel Solidão, publicado pela
Scritta) ou como o moçambicano Mia Couto (cujas Estórias abensonhadas foram publicadas o ano passado pela Nova
Fronteira), que dominam de forma notável a linguagem poética, fazendo da prosa
de ficção uma elegia à escritura, nestes textos não engendram conflitos e
situações capazes de preencher os vastos descampados do discurso. O leitor
menos desatento percebe que as conquistas formais deixadas pelo estruturalismo
constituem lições preciosas e, por isso mesmo, ainda presentes na criação
literária deste fim de século.
A
partir da consciência crítica do escritor e do domínio das metalinguagens do
ofício, novos prosadores apuram os recursos lingüísticos disponíveis, atingindo
às vezes um nível de linguagem classificado pelos teóricos da pós-modernidade
como neo-barroco.
Os
contos de A assinatura perdida
mantém-se em outro patamar. Marcados pelo gosto clássico da narrativa, eles se
reinventam como expressões legítimas dos nossos dias. Expressões que não
aspiram o reluzente selo da vanguarda mas ocultam a não velada ambição da
permanência.
O
crítico Hélio Pólvora saudou com entusiasmo a aparição deste livro de Aramis
Ribeiro Costa: “Aleluia. Ainda se escrevem contos que são contos. O conto que
narra, a partir de um núcleo ficcional definido”. E sintetizou a natureza da
invenção do autor: “O conto na tradição dos clássicos, mas tocado pelo espírito
da modernidade.” Na verdade, o crítico manifesta o seu ceticismo com relação à
eficácia das experiências narrativas da pós-modernidade, onde os elementos
principais de uma história são postos de lado em favor da projeção de aspectos
subsidiários. Cabe ao leitor pós-moderno preencher o vazio deixado pelos
fragmentos de uma realidade incompleta.
Se tal
exigência significa um avanço – tanto por parte do narrador, que passa a
trabalhar com sugestões, radicalizando a proposta do simbolismo, quanto por
parte do leitor, ao qual é exigida uma participação mais intensa, enquanto
recriador do texto, – em contrapartida, inicia-se uma espécie de diálogo de
surdos. Muitas vezes, emissor e receptor do discurso pós-moderno falam de
coisas diferentes. A comunicação anula o referente, a linguagem torna-se
meramente fática, para usarmos a
expressão de Malinowsky difundida por Jakobson. É como se as mensagem servissem
para prolongar ou para interromper a comunicação, testando o contato. Neste
caso, é possível a aparição de grandes descobertas e de pequenas imposturas. Os
estados de perplexidade de um indivíduo com pendores para a incomunicação podem
ser mascarados em formas de “arte”, quando a derrocada da linguagem é
interpretado como ampliação de recursos.
Convém
lembrar, a propósito, que os artistas clássicos faziam sua aprendizagem de modo
rigoroso. Antes de se considerarem artistas deviam se tornar artesãos
competentes e bem formados. Um escultor só passaria de artesão a artista depois
de domar os mistérios do mármore e vislumbrar por entre eles os mistérios do
mundo. Um poeta deveria, antes de tudo, saber escrever. Dominar os segredos da
língua do seu povo para depois criar a sua própria língua poética.
Mas
hoje, muita gente incapaz de desenhar uma forma simples resolve pintar um
quadro revolucionário... Antes mesmo de aprendermos a escrever com clareza os
sentidos da prosa do dia a dia queremos inventar novos sentidos na intrincada
arquitetura do verso. Por isso a palavra não fala, cala. Muitos escritores, que
começaram a escrever antes de saber ler, perderam o elo com o leitor. Seus
livros pulam por aí, incompreendidos pelo mundo, à caça de editores e leitores.
Deste
mal do século, com um travo de gosto romântico, Aramis Ribeiro Costa não morre.
Os contos de A assinatura perdida, ao
contarem uma história de forma quase irretocável — porque o modo de narrar e
aquilo que é narrado constituem um ao outro — restabelecem o elo perdido com o
leitor. O livro pode ser lido com prazer tanto pelo leitor mais simples e menos
afeito aos requintes da escrita, quanto pelo leitor exigente que encontra aí um
diálogo, vivo e bem urdido, com suas próprias indagações.
Antes
de usar a escrita e pedir a palavra, Ribeiro Costa aprendeu a ouvir, tornou-se
leitor perspicaz e atento, para só depois dividir com os outros leitores a sua
versão do mundo.
Por
isso as doze narrativas de A assinatura
perdida são da melhor qualidade. Algumas podem ser lidas uma, duas, muitas
vezes, com renovado prazer. O autor sabe inventar, inverter, o mundo que viu,
ou gostaria de ter visto, e fazê-lo caber nas poucas páginas do conto. Suas
histórias obedecem ao arquétipo do conto clássico, no sentido de fundado na
tradição literária. Por isso são breves, as tramas são simples, compostas por
um só núcleo. Mas a brevidade bem tecida projeta na mente do leitor o perfil
das personagens e a complexidade dos temas sugeridos.
Mesmo
numa narrativa destoante do conjunto como é “Itapagipe”, construída a partir de
despojos da memória em torno da vida de um antigo bairro de Salvador, o leitor
é aprisionado pelo mundo ficcional construído. Aprisionado e liberto, porque a
ficção é um jogo que nos permite o retorno negado pela vida.
Destoante do conjunto – conforme foi dito a respeito desta história
provinciana – porque, se as outras onze narrativas realizam na sua
circularidade a estrutura do conto, “Itapagipe” é uma história tecida como se
costurasse partes de um relato maior: como capítulos de uma novela que ainda
não foi escrita.
O
conto, como bem demonstram as histórias deste livro, é um mundo autônomo e
completo, embora sintético. Na sua unidade lembra o ovo, célula única, porém
plena de vida. Já a novela é um rosário de episódios unidos por um fio central
que serve de elo entre os acontecimentos.
A assinatura perdida, de Aramis Ribeiro
Costa, vale a pena repetir, é lida com prazer; condição primordial da
literatura.
Independentemente da ressonância na mídia,
avara para com os autores que começam a se impor, convém avaliar: estamos
diante de um livro definitivo. De um dos melhores exemplares do novo conto
brasileiro.
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O elo perdido com o
leitor. Artigo crítico sobre o livro A
assinatura perdida, de Aramis Ribeiro Costa. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 16 mar. 98,
p. 7.