23/11/2015

elo

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


O elo perdido com o leitor

   O leitor que busca no texto o prazer das descobertas, dos encontros inesperados e dos reencontros; que sabe cumprimentar com igual atenção a alegria das insignificantes banalidades do cotidiano e a surpresa de ver o que antes não via, lerá mais de uma vez os contos de Aramis Ribeiro Costa em A assinatura perdida.
   Trata-se de um escritor que marca a sua presença diante do leitor da forma mais apropriada: através de um texto maduro e bem construído. Tendo publicado seus livros anteriores com repercussão limitada à Ba­hia (salvo dois títulos infantis lançados pela Ática), Aramis Ribeiro Cos­ta chega ao mercado nacional, numa bem cuidada edição da Ilumi­nuras, com a qualificação necessária para ocupar um lugar ao lado dos bons contistas que se afirmaram nes­te fim do século.
   A sua matéria, transmudada em arte, é a vida, a vida com seus vícios, virtudes, grandezas e misérias. A pequenez e a redenção dos homens. Sua linguagem, contida e depurada, sugere a absorção atenta dos clássicos de todos os tempos, brasileiros e estrangeiros. A naturalidade com que transita por entre os artefatos e artifícios da construção ficcional revela o leitor e o aprendiz dos narradores franceses e russos. Dos portugueses e brasileiros, especialmente de um clássico da modernidade, Josué Montello, a quem o livro é dedicado.
   Com isso não se aponta dependência ou falta de originalidade, mas a retomada consciente e inventiva de uma tradição afortunada. Aramis Ribeiro Costa é um narrador que sabe construir seu texto e contar uma história bem engendrada. Há um sensível equilíbrio entre o domínio da linguagem, ou a construção do texto vernáculo, e a fabulação de um mundo paralelo. Um mundo inventado com tanta arte que parece competir com o mundo real.
   A encruzilhada na qual derrapam alguns dos novos ficcionistas é o descompasso entre a escrita e o invento. Autores como o paulista João Carrascosa (premiado com Hotel Solidão, publicado pela Scritta) ou como o moçambicano Mia Couto (cujas Estórias abensonhadas foram publicadas o ano passado pela Nova Fronteira), que dominam de forma notável a linguagem poética, fazendo da prosa de ficção uma elegia à escritura, nestes textos não engendram conflitos e situações capazes de preencher os vastos descampados do discurso. O leitor menos desatento percebe que as conquis­tas formais deixadas pelo estruturalismo constituem lições preciosas e, por isso mesmo, ainda presentes na criação literária deste fim de século.
   A partir da consciência crítica do escritor e do domínio das metalinguagens do ofício, novos prosadores apuram os recursos lingüísticos disponíveis, atingindo às vezes um nível de linguagem classificado pelos teóricos da pós-modernidade como neo-barroco.
   Os contos de A assinatura perdida mantém-se em outro patamar. Marcados pelo gosto clássico da narrativa, eles se reinventam como expressões legítimas dos nossos dias. Expressões que não aspiram o reluzente selo da vanguarda mas ocultam a não velada ambição da permanência.
   O crítico Hélio Pólvora saudou com entusiasmo a aparição deste livro de Aramis Ribeiro Costa: “Ale­luia. Ainda se escrevem contos que são contos. O conto que narra, a par­tir de um núcleo ficcional definido”. E sintetizou a natureza da invenção do autor: “O conto na tradição dos clássicos, mas tocado pelo espírito da modernidade.” Na verdade, o crítico manifesta o seu ceticismo com relação à eficácia das experiências narrativas da pós-modernidade, onde os elementos principais de uma história são postos de lado em favor da projeção de aspectos subsidiários. Cabe ao leitor pós-moderno preencher o vazio deixado pelos fragmentos de uma realidade incompleta.
   Se tal exigência significa um avanço – tanto por parte do narrador, que passa a trabalhar com sugestões, radicalizando a proposta do simbolismo, quanto por parte do leitor, ao qual é exigida uma participação mais intensa, enquanto recriador do texto, – em contrapartida, inicia-se uma espécie de diálogo de surdos. Muitas vezes, emissor e receptor do discurso pós-moderno falam de coisas diferentes. A comunicação anula o referente, a linguagem torna-se meramente fática, para usarmos a expressão de Malinowsky difundida por Jakobson. É como se as mensagem servissem para prolongar ou para interromper a comunicação, testando o contato. Neste caso, é possível a aparição de grandes descobertas e de pequenas imposturas. Os estados de perplexidade de um indivíduo com pendores para a incomunicação podem ser mascarados em formas de “arte”, quando a derrocada da linguagem é interpretado como ampliação de recursos.
   Convém lembrar, a propósito, que os artistas clássicos faziam sua aprendizagem de modo rigoroso. An­tes de se considerarem artistas deviam se tornar artesãos competentes e bem formados. Um escultor só passaria de artesão a artista depois de domar os mistérios do mármore e vislumbrar por entre eles os mistérios do mundo. Um poeta deveria, antes de tudo, saber escrever. Dominar os segredos da língua do seu povo para depois criar a sua própria língua poética.
   Mas hoje, muita gente incapaz de desenhar uma forma simples resolve pintar um quadro revolucionário... Antes mesmo de aprendermos a escrever com clareza os sentidos da prosa do dia a dia queremos inventar novos sentidos na intrincada arquitetura do verso. Por isso a palavra não fala, cala. Muitos escritores, que começaram a escrever antes de saber ler, perderam o elo com o leitor. Seus livros pulam por aí, incompreendidos pelo mundo, à caça de editores e leitores.
   Deste mal do século, com um travo de gosto romântico, Aramis Ribeiro Costa não morre. Os contos de A assinatura perdida, ao contarem uma história de forma quase irretocável — porque o modo de narrar e aquilo que é narrado constituem um ao outro — restabelecem o elo perdido com o leitor. O livro pode ser lido com prazer tanto pelo leitor mais simples e menos afeito aos requintes da escrita, quanto pelo leitor exigente que encontra aí um diálogo, vivo e bem urdido, com suas próprias indagações.
   Antes de usar a escrita e pedir a palavra, Ribeiro Costa aprendeu a ouvir, tornou-se leitor perspicaz e atento, para só depois dividir com os outros leitores a sua versão do mundo.
   Por isso as doze narrativas de A assinatura perdida são da melhor qualidade. Algumas podem ser lidas uma, duas, muitas vezes, com renovado prazer. O autor sabe inventar, inverter, o mundo que viu, ou gostaria de ter visto, e fazê-lo caber nas poucas páginas do conto. Suas histórias obedecem ao arquétipo do conto clássico, no sentido de fundado na tradição literária. Por isso são breves, as tramas são simples, compostas por um só núcleo. Mas a brevidade bem tecida projeta na mente do leitor o perfil das personagens e a complexidade dos temas sugeridos.
   Mesmo numa narrativa destoante do conjunto como é “Itapagipe”, construída a partir de despojos da memória em torno da vida de um antigo bairro de Salvador, o leitor é aprisionado pelo mundo ficcional construído. Aprisionado e liberto, porque a ficção é um jogo que nos permite o retorno negado pela vida.
   Destoante do conjunto – conforme foi dito a respeito desta história provinciana – porque, se as outras onze narrativas realizam na sua circularidade a estrutura do conto, “Itapa­gi­pe” é uma história tecida como se costurasse partes de um relato maior: como capítulos de uma novela que ainda não foi escrita.
   O conto, como bem demonstram as histórias deste livro, é um mundo autônomo e completo, embora sintético. Na sua unidade lembra o ovo, célula única, porém plena de vida. Já a novela é um rosário de episódios unidos por um fio central que serve de elo entre os acontecimentos.
   A assinatura perdida, de Aramis Ribeiro Costa, vale a pena repetir, é lida com prazer; condição primordial da literatura.
   Independentemente da ressonância na mídia, avara para com os autores que começam a se impor, convém avaliar: estamos diante de um livro definitivo. De um dos melhores exemplares do novo conto brasileiro.

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O elo perdido com o leitor. Artigo crítico sobre o livro A assinatura perdida, de Aramis Ribeiro Costa. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 16 mar. 98, p. 7.