Romance de inspiração bíblica
A
partir do “Livro de Rute”, do Antigo Testamento, Frank G. Slaughter escreveu A canção de Rute (Record), após alguns
exercícios sobre o tema que lhe serviu de base para um roteiro cinematográfico.
Este livro de Slaughter resulta de pesquisas suas e de outros autores
empenhados no conhecimento desta velha
fonte.
Confrontado
o episódio bíblico com a obra de ficção que dela resultou, o texto ficcional se
mostra rico em detalhes e tramas destinados a prender a atenção do leitor. Os
poucos versículos que constituem o “Livro de Rute” não fornecem a maior parte
do material necessário ao enredo ficcional. O longo contato do autor com os
temas bíblicos e a história do povo judeu é que permite mesclar, com segurança,
fatos acontecidos e episódios imaginários. Tudo isto confere interesse e
realismo ao livro, apesar de alguns pontos mal resolvidos.
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O
breve episódio bíblico de Rute, situado entre os livros dos Juízes e de Samuel,
começa com o êxodo da família de Elimeleque:
“E
sucedeu que, nos dias em que os juízes julgavam, houve uma fome na terra; pelo
que um homem de Belém de Judá saiu a peregrinar nos campos de Moabe, ele e sua
mulher, e seus dois filhos.”
O
Velho Testamento circunscreve a história ao casamento dos dois filhos de
Elimeleque, Malom e Quiliom, com Rute e Orfa, passando ao retorno de Noemi à
terra de Judá, acompanhada por Rute, após a morte do marido e dos dois filhos.
A jovem viúva de Malom casa-se com Boaz e inicia-se a genealogia de David.
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Embora
o trabalho de pesquisa histórica de Frank G. Slaughter tenha sido capaz de
montar a trama do livro, falta a ele a preocupação essencial a qualquer
escritor para com os detalhes. Se a época como um todo foi recriada a contento,
faltou ao escritor se debruçar sobre as particularidades de época que,
inseridas aqui e ali, assegurariam ao livro uma maior fidelidade no seu
processo de mímese. Como o público menos exigente se preocupa apenas com o
geral, os pequenos pontos que montam o quebra-cabeça são deixados de lado. Mas
mesmo escrevendo para um público pouco exigente, o escritor que domina o seu
ofício cuida de elaborar a sua obra com rigor. A negligência faz com que um
livro com uma trama bem urdida e bom de ler resulte numa obra falha, com
passagens pouco convincentes, porque o trabalho de pesquisa visou apenas a
composição da história, esquecendo os pequenos elementos constituintes da
mesma, como os hábitos, valores, costumes etc.
A
designação imprópria de costumes antigos, através de termos modernos,
comprometam o objeto original. Por exemplo, quando um mercador judeu com livre
acesso aos moabitas tem sua mão cortada, ele é identificado no livro como um
contrabandista, atividade inexistente como tal no mundo antigo, quando as
barreiras fiscais não tinham a configuração atual. Um estudo, mesmo
circunstancial, das relações comerciais no oriente médio, seus valores e
conceitos, enriqueceriam a construção de personagens do livro que são
comerciantes ou mercadores, evitando a caracterização inadequada.
Convém
lembrar que um escritor não precisa ser especialista nas atividades dos seus
personagens, mas não pode ignorá-las inteiramente. O humorista Henfil costumava
ler tratados de medicina, sociologia, direito, mecânica, informática, economia,
criação de galinhas etc. Evidentemente, ele não era nem médico, nem sociólogo,
nem criador de galinhas. Era humorista. Mas as suas histórias e piadas para
serem convincentes precisavam de revelar intimidade com as diversas atividades
humanas em cujas circunstâncias ocorriam. Assim o faz todo artista que se
preza. Os pintores e escultores do renascimento estudavam anatomia ao lado dos
futuros cirurgiões, não para se tornarem médicos, mas para conferirem aos seus
quadros e às suas esculturas uma mímese mais aceitável do corpo humano.
Bem
verdade que a escola do renascimento há muito que foi “superada” por outras
escolas estéticas, mas alguns valores por ela herdados da arte antiga ainda
constituem a pedra de toque de qualquer artista. Não é por acaso que alguns
artistas modernos não chamados de clássicos. A permanência do bom gosto e do
rigor do processo de construção é comum a um “clássico” da modernidade, assim
como a um antigo artista do mundo clássico.
Mesmo
os escritores interessados em faturar direitos autorais junto ao grande público
não podem esquecer estas coisas, sob pena de serem reconhecidos apenas como
aprendizes milionários. Nunca como verdadeiros oficiais do seu ofício. Um
escritor de massa, isto é, um autor de livros comerciais, pode ser aceito mesmo
que não seja um bom artista, desde que seja um bom artesão. Mas um artesão
desatento dificilmente se tornará escritor, mesmo que de livros destinados
apenas a enriquecer os comerciantes.
A Canção de Rute teria tudo para ser um
excelente livro, desde que Frank G. Slaughter fosse mais do que um roteirista
de boas histórias — se ele fosse um artesão do romance. Mesmo do romance de
massa, do kit.
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Romance de inspiração
bíblica. Artigo crítico sobre o livro A
canção de Rute, de Frank G.
Slaughter. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 22 dez. 97, p. 7.
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Correspondências para
esta coluna:
R. Alberto Pondé,
147/103. 40.280-630, Salvador, Bahia