A dignificação da
memória
O escritor Pedro Nava
faz parte de uma geração da qual saíram os mais expressivos poetas e romancistas
do modernismo brasileiro. Na juventude, conviveu com estas figuras e, não
encontrando um espaço próprio de afirmação, foi se afastando da literatura à
medida que avançava nos estudos médicos que constituíram a sua vasta produção
científica de quase meio século.
O poeta
pouco ressonante dos anos vinte, tornou-se um bem-sucedido pesquisador médico
até os anos setenta, quando as águas represadas da criação literária
arrebentaram os diques – derramando nos caminhos da literatura brasileira uma
obra memorialística de poder clássico e luminosa renovação modernista.
O menino
de Juiz de Fora, que se muda para o Rio de Janeiro, em 1910, retorna, no ano
seguinte, para depois estudar medicina, em Belo Horizonte. Formado, vai exercer
a profissão no Rio, onde reencontra velhos companheiros do modernismo em Minas,
como o ministro Gustavo Capanema, em cujo gabinete trabalhava outro
contemporâneo, o poeta Carlos Drummond de Andrade. Pedro Nava dedica-se quase
exclusivamente à medicina, conquistando aí o respeito dos seus pares e dos
antigos companheiros de aventura literária.
Somente depois de realizar uma obra científica vasta e bem sucedida, é que o escritor modernista ressurge, não mais como poeta de produção rarefeita, mas como narrador da própria experiência vivida. Ambicioso e ciente do seu preparo intelectual, Nava avalia o espaço que lhe estava reservado. O modernismo já produzira grandes poetas, contistas e grandes romancistas, restava então o caminho do memorialismo.
Somente depois de realizar uma obra científica vasta e bem sucedida, é que o escritor modernista ressurge, não mais como poeta de produção rarefeita, mas como narrador da própria experiência vivida. Ambicioso e ciente do seu preparo intelectual, Nava avalia o espaço que lhe estava reservado. O modernismo já produzira grandes poetas, contistas e grandes romancistas, restava então o caminho do memorialismo.
Gênero
fragmentado entre a história e a literatura, entre o relato e a ficção, o
memorialismo foi retomado por Pedro Nava, com o equilíbrio dos clássicos e o
poder de inventividade dos modernos. Para demarcar o seu território, qual
guerreiro conquistador, Nava não hesita em transformar o discurso
memorialístico em campo de batalha, onde finca bandeira de vencedor. Assim é
que permeia de considerações sobre a natureza da sua escrita a trama narrativa
dos seis livros de memória, ciclo aberto com Baú de Ossos, em 1972, e encerrado com O Círio Perfeito, onze anos depois. Quando preparava o sétimo
volume, que se chamaria Cera das Almas,
foi colhido por elas.
Nava
impõe a indissociabilidade da lembrança com a ficção, para evidenciar, em Balão Cativo, que os fatos da realidade
são como pedra e argamassa “manipulados pela imaginação criadora”. E, aí mesmo,
afirma triunfante: “Só há dignidade na recriação. O resto é relatório”.
O trajeto
do escritor e a natureza da sua escrita são reunidos com equilíbrio no denso
livro Espaços da Memória, de Joaquim
Alves de Aguiar. O estudioso realiza uma abordagem crítica que atrela a
imanência da análise à contextualização do autor e da obra, percorrendo um
trajeto longo e sinuoso, como a obra estudada.
Procurando
dar conta de múltiplas questões que se imbricam, Joaquim Aguiar parte da
simples localização do homem e chega a uma acurada compreensão crítica do
texto. Da diversidade de movimentos é que resulta a densidade, ocultada pela
exposição muitas vezes leve e bem-humorada. A escrita do crítico parece
dialogar em contraponto com a escrita do autor estudado. Há momentos em que a
adjetivação imprevista e funcionalmente substantiva quebra a aridez do discurso
acadêmico, para se fazer interlocutora da escrita inventiva do autor de Galo
das Trevas.
Na
excelente introdução do livro, que ocupa quase cinquenta páginas, Aguiar
proporciona ao leitor uma mostra generosa da sua investigação. Abre o texto
introduzindo o assunto em moldes de quem narra uma história: “Pedro Nava era
praticamente um velho, beirava os sessenta e cinco anos, quando trocou sua
condição de poeta e prosador bissexto pela de escritor contumaz”.
Mas
Joaquim Aguiar permeia a descrição amena com a análise de aspectos essenciais
da obra de Pedro Nava, partindo, implicitamente, da hipótese segundo a qual
Nava não encontrou o seu lugar nos anos de fixação do cânone do modernismo
porque, desde cedo, conforme os hábitos da infância e da juventude, fundava a
criação na experiência vivida. Primeiro viver, para depois narrar, contata o
estudioso.
Outra consequência positiva do atrelamento da
narrativa de Pedro Nava à experiência é a singular capacidade de tornar
orgânica, no corpo da obra, a vastidão de assuntos tratados. Desde menino, Nava
retinha na memória os acontecimentos circundantes e, como nos informa Joaquim Aguiar,
tornou-se um arquivista da família. Enquanto a memória retinha histórias,
sentimentos e ressentimentos, o homem armazenava objetos e relíquias.
Os casos e coisas familiares são iluminados na
narrativa de Pedro Nava pela sua articulação com fatos essenciais da época; com
minúcias, reflexões e pequenas jóias da percepção. Como então transformar os
fatos estocados neste “arquivo considerável” em narrativa coerente, pergunta-se
Aguiar.
A
resposta é encontrada no fato de Nava só ter começado a sua obra literária
quando era “praticamente um velho”. Os longos anos de disciplina científica
serviram para a constituição do método adotado pelo memorialista. Aguiar
ressalta a designação preferida por Nava para os projetos, ou as “bonecas” dos
seus livros: “esqueleto”.
Primeiro,
trabalhava a ossatura da obra para depois recobri-la de carne e vida ficcional.
Assim, nasce o seu primeiro Baú de Ossos,
título duplamente justificável. Primeiro, pela constituição do método; depois,
pelo fato de o memorialismo ser uma operação de resgate dos ausentes. Dos baús
funerários, retira-se a ossatura dos parentes mortos e das pessoas enterradas
no esquecimento. Da fantasia, extrai o halo de vida que sustenta os personagens
recriados.
Por isso,
Nava sabe que a memória corrompe o passado e a narrativa memorialística só é
possível porque o presente reescreve tudo com suas próprias tintas.
É aí que o estudo de Joaquim Aguiar aproxima o
memorialismo de Pedro Nava do épico, ressaltando inclusive a monumentalidade
construída pelo escritor.
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A
dignificação da memória. Artigo crítico sobre o livro Epaços da memória, de Joaquim Aguiar. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 28 set. 98,
p. 7.