Um exército negro no mundo ariano
Os
ficcionistas do Rio Grande do Sul se debruçam sobre os fatos da história para
reconstituir o caráter do processo de formação do seu povo. Tabajara Ruas
retorna a esta vertente tão forte na literatura produzida no extremo sul com Netto perde sua alma, romance publicado
inicialmente em 1995 pela Mercado Aberto, que vem alcançando novas edições.
Também
nisto o livro se insere num fenômeno dos mais animadores no âmbito da
literatura brasileira e do seu mercado editorial: a criação de focos regionais
de grande densidade literária. Os gaúchos não precisam do aval dos grandes
meios de comunicação do eixo Rio-São Paulo para esgotar edições e assegurar o
prestígio dos seus autores. Eles têm público cativo, interessado em rever os
fundamentos da sua própria cultura.
Guardadas as proporções do seu significado histórico-cultural, pode-se
dizer que na literatura do Sul ocorre fenômeno parecido com o da música de
massa produzida na Bahia. As proporções devem ser guardadas por que no caso da
música baiana de consumo não há qualquer preocupação em refletir sobre a
condição do seu povo. É verdade que a questão negra serve de fundo ao boom das bandas baianas. Mas, apenas,
serve de fundo falso. As cintilações carnavalescas das vênus platinadas da vida
falam mais alto, com seu forte apelo comercial.
As
bandas de fácil consumo pongam numa vertente que tanto Caetano quanto Gil
iniciaram: a da valorização do negro e do questionamento do seu lugar numa
sociedade formada por oitenta por cento de negro-mestiços (a capital baiana). A
vertente é a mesma mas, enquanto a revolução empreendida neste aspecto pelos
dois poetas da nosso música tinha objetivos definidos, a música industrial
baiana pega um pano de fundo vistoso para construir o cenário do seu
faturamento.
Diferente do que ocorre com a criação ficcional dos gaúchos, a música
baiana dela se aproxima no que diz respeito à criação de um mercado
independente. Temos, sem dúvida, um mercado próprio e autônomo para a música de
massa, embora os compositores que investem na qualidade e no rigor pouco se
beneficiem deste boom baiano.
Ainda
mantendo o paralelo, observe-se que a vertente construída pelos escritores do
Rio Grande do Sul valoriza toda a sua cultura, porque não se construiu um clichê, um kitsch destinado ao consumo, mas foi encontrado um sentido local
para o fenômeno da criação artística.
O livro
de Tabajara Ruas reúne dois momentos diversos da história: a Guerra dos
Farrapos, a República do Rio Grande, presidida por Bento Gonçalves, com seus
aliados separatistas e a Guerra da Tríplice Aliança, como dizem os gringos (ou
a Guerra do Paraguai, como dizemos os mestiços).
O
romance começa e termina com uma cena no hospital militar de Corrientes, na
madrugada de 1º de julho de 1866, onde o general Netto vive suas últimas horas.
A ação central se passa toda no quarto do enfermo, dando lugar a um longo flash back onde aparecem cenas vividas
pelo general Netto durante a guerra separatista ou a “rebelião rio-grandense
contra o Império do Brasil”.
Em 1836
o general Netto defendia a constituição de uma república independente e
abolicionista. Por isso, a ele se aliaram milhares de negros que vieram a
formar o 1º Corpo de Lanceiros, constituindo o grande “exército particular do
general Netto”, como era chamado na corte ou na província.
Algumas
cenas referentes aos voluntários deste exército são de grande densidade. O
próprio tratamento dado ao preconceito racial (tão indisfarçado no país
brasileiro dos gringos), é surpreendente. Tabajara Ruas compõe o seu herói como
o redentor dos negros. Também na vida doméstica, Netto se torna pai adotivo de
Benedito, um negrinho órfão encontrado durante os intervalos de combate.
Num
diálogo com aquela que seria a sua companheira, o general Netto recebe com
ironia o possível resquício de preconceito na fala da amada:
“— Por
acaso não era uma criança de cor?
Netto
olhou para ela.
— De
cor? Bueno, cor ele tinha, logicamente. Cor negra. Ele é preto como um carvão,
se é isso que vosmecê quis dizer.
—
General Netto, não se faça de proselitista comigo. Eu não sou o embaixador da
Inglaterra.
— Eu
tenho certeza que vosmecê não é o embaixador da Inglaterra, senhorita Maria.”
Ponto a
ponto, Tabajara Ruas constrói o seu livro com rigor e técnica. Sua linguagem é
fluente e transparente, quando a transparência quer jogar o leitor diretamente
em contato com o universo narrado. Ela se faz opaca e presente, quando quer
sublinhar aspectos desta mesma realidade que, de outro modo, passariam perdidos
no turbilhão dos fatos.
Escritor correto e senhor do seu ofício, Tabajara Ruas faz da precisão
do dizer e do discreto emprego das estruturas narrativas instrumentos de enlevo
e prazer intelectual dos seus leitores.
Por
outro lado, o romance dá mostras de como um escritor criativo pode fazer de um
dos personagens da história regional, e mesmo dos fatos conhecidos, motivo e
tema de uma narrativa própria e plena de interesse.
É com
base em fatos já tomados como matéria ficcional por outros escritores que
Tabajara Ruas constrói sua narrativa, mas o aspecto, o viés do olhar, dá a cada
abordagem uma nova dimensão e um novo significado. Tudo isso, permeado por um
texto capaz de manter vivas a atenção e a curiosidade do leitor. Tudo isso
capaz de cumprir uma das funções menos celebradas e mais importantes da
literatura: entreter, dar prazer, divertir.
Quem pensa
que a literatura serve apenas para ensinar, fazer refletir, elevar o leitor, vê
apenas uma lado do poliedro. O prazer é a prova dos nove. Saber tem sabor, já
se disse. Degustou. Quem não prova fica de fora.
______________________
Um exército negro no mundo ariano.
Artigo crítico sobre o livro Netto
perde sua alma de Tabajara Ruas. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 4 mai.
98, p. 7.