23/11/2015

exército negro

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Um exército negro no mundo ariano

   Os ficcionistas do Rio Grande do Sul se debruçam sobre os fatos da história para reconstituir o caráter do processo de formação do seu povo. Tabajara Ruas retorna a esta vertente tão forte na literatura produzida no extremo sul com Netto perde sua alma, romance publicado inicialmente em 1995 pela Mercado Aberto, que vem alcançando novas edições.
   Também nisto o livro se insere num fenômeno dos mais animadores no âmbito da literatura brasileira e do seu mercado editorial: a criação de focos regionais de grande densidade literária. Os gaúchos não precisam do aval dos grandes meios de comunicação do eixo Rio-São Paulo para esgotar edições e assegurar o prestígio dos seus autores. Eles têm público cativo, interessado em rever os fundamentos da sua própria cultura.
   Guardadas as proporções do seu significado histórico-cultural, pode-se dizer que na literatura do Sul ocorre fenômeno parecido com o da música de massa produzida na Bahia. As proporções devem ser guardadas por que no caso da música baiana de consumo não há qualquer preocupação em refletir sobre a condição do seu povo. É verdade que a questão negra serve de fundo ao boom das bandas baianas. Mas, apenas, serve de fundo falso. As cintilações carnavalescas das vênus platinadas da vida falam mais alto, com seu forte apelo comercial.
   As bandas de fácil consumo pongam numa vertente que tanto Caetano quanto Gil iniciaram: a da valorização do negro e do questionamento do seu lugar numa sociedade formada por oitenta por cento de negro-mestiços (a capital baiana). A vertente é a mesma mas, enquanto a revolução empreendida neste aspecto pelos dois poetas da nosso música tinha objetivos definidos, a música industrial baiana pega um pano de fundo vistoso para construir o cenário do seu faturamento.
   Diferente do que ocorre com a criação ficcional dos gaúchos, a música baiana dela se aproxima no que diz respeito à criação de um mercado independente. Temos, sem dúvida, um mercado próprio e autônomo para a música de massa, embora os compositores que investem na qualidade e no rigor pouco se beneficiem deste boom baiano.
   Ainda mantendo o paralelo, observe-se que a vertente construída pelos escritores do Rio Grande do Sul valoriza toda a sua cultura, porque não se construiu um clichê, um kitsch destinado ao consumo, mas foi encontrado um sentido local para o fenômeno da criação artística.
   O livro de Tabajara Ruas reúne dois momentos diversos da história: a Guerra dos Farrapos, a República do Rio Grande, presidida por Bento Gonçalves, com seus aliados separatistas e a Guerra da Tríplice Aliança, como dizem os gringos (ou a Guerra do Paraguai, como dizemos os mestiços).
   O romance começa e termina com uma cena no hospital militar de Corrientes, na madrugada de 1º de julho de 1866, onde o general Netto vive suas últimas horas. A ação central se passa toda no quarto do enfermo, dando lugar a um longo flash back onde aparecem cenas vividas pelo general Netto durante a guerra separatista ou a “rebelião rio-grandense contra o Império do Brasil”.
   Em 1836 o general Netto defendia a constituição de uma república independente e abolicionista. Por isso, a ele se aliaram milhares de negros que vieram a formar o 1º Corpo de Lanceiros, constituindo o grande “exército particular do general Netto”, como era chamado na corte ou na província.
   Algumas cenas referentes aos voluntários deste exército são de grande densidade. O próprio tratamento dado ao preconceito racial (tão indisfarçado no país brasileiro dos gringos), é surpreendente. Tabajara Ruas compõe o seu herói como o redentor dos negros. Também na vida doméstica, Netto se torna pai adotivo de Benedito, um negrinho órfão encontrado durante os intervalos de combate.
   Num diálogo com aquela que seria a sua companheira, o general Net­to recebe com ironia o possível resquício de preconceito na fala da amada:
   “— Por acaso não era uma criança de cor?
   Netto olhou para ela.
   — De cor? Bueno, cor ele tinha, logicamente. Cor negra. Ele é preto como um carvão, se é isso que vosmecê quis dizer.
   — General Netto, não se faça de proselitista comigo. Eu não sou o embaixador da Inglaterra.
   — Eu tenho certeza que vosmecê não é o embaixador da Inglaterra, senhorita Maria.”
   Ponto a ponto, Tabajara Ruas constrói o seu livro com rigor e técnica. Sua linguagem é fluente e transparente, quando a transparência quer jogar o leitor diretamente em contato com o universo narrado. Ela se faz opaca e presente, quando quer sublinhar aspectos desta mesma realidade que, de outro modo, passariam perdidos no turbilhão dos fatos.
   Escritor correto e senhor do seu ofício, Tabajara Ruas faz da precisão do dizer e do discreto emprego das estruturas narrativas instrumentos de enlevo e prazer intelectual dos seus leitores.
   Por outro lado, o romance dá mostras de como um escritor criativo pode fazer de um dos personagens da história regional, e mesmo dos fatos conhecidos, motivo e tema de uma narrativa própria e plena de interesse.
   É com base em fatos já tomados como matéria ficcional por outros escritores que Tabajara Ruas constrói sua narrativa, mas o aspecto, o viés do olhar, dá a cada abordagem uma nova dimensão e um novo significado. Tudo isso, permeado por um texto capaz de manter vivas a atenção e a curiosidade do leitor. Tudo isso capaz de cumprir uma das funções menos celebradas e mais importantes da literatura: entreter, dar prazer, divertir.
   Quem pensa que a literatura serve apenas para ensinar, fazer refletir, elevar o leitor, vê apenas uma lado do poliedro. O prazer é a prova dos nove. Saber tem sabor, já se disse. Degustou. Quem não prova fica de fora.

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Um exército negro no mundo ariano. Artigo crítico sobre o livro Netto perde sua alma de Tabajara Ruas. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 4 mai. 98, p. 7.