19/11/2015

Intertextualidade, diálogo

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Intertextualidade, diálogo entre textos

        A comunicação estética, ou o fato do homem entrar em contato com o seu semelhante através de formas artísticas, traz a intertextualidade para o âmbito das discussões. Tenho diante dos olhos a carta de um leitor com algumas questões que passam a ser respondidas a respeito da intertextualidade enquanto fenômeno literário e enquanto fato social mais ou menos comum.
       Uma idéia compartilhada por um texto A e por um texto B é uma idéia intertextual. Portanto, quando usamos a expressão intertextualidade, o fazemos para sublinhar a presença em um texto daquilo que já pertence a outro texto.
       Se alguém costuma nas suas intervenções na imprensa escrita, ou na televisão, usar com frequência uma frase feita, esta frase se torna facilmente identificada como dele, como própria do seu texto, ou do seu estilo. Imagine-se então que uma outra pessoa, visando a um objetivo específico, utilize de modo consciente, ou até mesmo inconsciente, esta frase já identificada. Ele estará se valendo do recurso da intertextualidade, quer para ironizar, quer para dar realce ao assunto, ou para através desta ponte intertextual dizer um pouco mais do que as suas próprias palavras diriam.
       Quando alguém incorpora a fala do outro, mesmo sem fazer referência ao outro, mas adaptando esta fala aos seus objetivos, está estabelecendo a intertextualidade. Está utilizando um guarda-roupa de segunda mão, ou pagando tributo aos outros usuários da língua.
       Mas este fenômeno é bem mais significativo na comunicação feita através de sistemas estéticos, ou das várias artes. O uso da intertextualidade na linguagem referencial ou informativa deriva talvez da sua inserção, cada vez maior, na literatura e nas artes.
       A sociedade moderna, ao suspeitar da falência de seus alicerces individualistas, enamora-se. Socializa-se. Como forma de sobrevivência.
       Se o indivíduo, com tudo que dele deriva, é o centro cósmico da sociedade burguesa e da sua forma de arte mais legítima, a arte romântica, o homem, enquanto indivíduo, é derrocado do seu posto pelas relações sociais que se instauram em nome da coletividade e de uma sociedade nova, utópica e realista.
       A criação artística, filha do mito, homem público, com a propriedade privada, mulher fiel ao dono, depois de longos anos longe do pai, e de habitar a casa materna, volta-se edipianamente para o pai da horda, qual filha pródiga. Em outras palavras: assim como, nos tempos ancestrais, o homem compartilhava todos os bens, materiais e espirituais (ou melhor, quase todos), também a língua, o mito, a poesia, a música e a dança se casavam num rito único, vislumbrado por Rousseau, na esteira de Vico.
       Falar, fabular, poetar, cantar e dançar eram, ao mesmo tempo, uma só coisa. A fala, fabulosa, era, a um só tempo, música poesia e dança. O amor coletivo durou um pouco. A separação veio depois.
       Enquanto mito e rito, a arte era uma construção coletiva, um grande sonho repartido e uno, expressão do desejo tribal, onde as vozes e falas se harmonizavam, às vezes em dissonâncias, fundindo várias vertentes.
       Se o texto era de todos, a alteração, a atualização do texto, para dizer várias verdades em processo se dava no âmbito do próprio texto. Com a sua transformação em propriedade privada, as palavras não mais pertencem ao vento, ou à boca de quem por elas é beijado, e a reconstrução do texto implica sempre num novo texto, não mais inter, mas intratextual, onde o novo emissor se afirma senhor e dono.
       Mas este discurso pessoal e intransferível será sempre um mero retorno do recalcado: dos discursos ouvidos, enquanto grito para ouvir a voz do dono. Por isso, para preservar o seu domínio sobre o verbo, o sujeito reconhece a referência ao verbo do outro.
       Em poucas palavras, podemos compreender o conceito de intertextualidade, de um lado, enquanto fato social e, do outro, enquanto fato da série literária ou artística  determinado pelas relações sociais.
       Este fenômeno pode ser descrito como a ressonância de vozes no texto literário. Ou como o permanente diálogo mantido pelas obras entre si, ou pelas diversas manifestações artísticas, onde um texto remete ao universo de outro texto; e onde uma composição musical evoca outra composição.
       Pintura, arquitetura, cinema, teatro, música e literatura são exemplos de expressões artísticas que não ficaram imunes ao diálogo das obras entre si, numa cumplicidade aliciante para com o público. A troca de experiências é uma atitude essencial do homem, também assumida por uma das manifestações mais complexas do seu espírito: a arte.
      
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       Na Poética, Aristóteles faz a distinção entre duas espécies de mitos presentes na obra literária: os mitos tradicionais e os mitos inventados pelos poetas. Para ele não há nenhuma hierarquização entre estes dois procedimentos estéticos. São igualmente poetas tanto aqueles que produzem seus próprios mitos, através da fabulação, quanto aqueles que constróem o reino do verossímil poético sobre mitos já existentes, fruto do engenho coletivo.
       Aristóteles reconhecia que o poder de reciclagem destes mitos num novo sistema de significações assegura a natureza do texto poético. Daí a importância que assume para o filósofo a elocução, fundadora de um novo sentido, um sentido universal sobre o particular. Deste modo, um mito ampliando os feitos de um rei se torna poesia quando deixa de ser particular, ou seja, de dizer respeito apenas aos fatos e circunstâncias deste personagem real, situado e datado, e a partir da verossimilhança se torna universal. Abandona seu significado original em favor de todo um universo de sentido. O que quer dizer: aberto, aplicável a outras situações e sujeitos.
       Observe-se que, para Aristóteles, mito era tanto o que hoje a antropologia compreende como tal, quanto era também correspondente a fábula, história, ou outro nome dado aos motivos da obra. Dizia respeito a uma narrativa comum a todos os indivíduos, social, portanto; e também à fabulação de uma narrativa individual.
       Instaurava-se, avant la lettre, desde a antigüidade, a discussão sobre a intertextualidade, embora somente anos mais tarde os olhos da teoria percebessem o fato teorizado. Somente com um livro publicado por Bakhtin na década de vinte e descoberto pela inteligentzia acadêmica nos anos setenta, com a tradução francesa a que todos pudemos ter acesso, Problèmes de la Poétique de Dostoievsky, o fenômeno da intertextualidade foi absorvido pelo "sistema da moda".

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Intertextualidade, diálogo entre textos. Artigo teórico sobre o fenômeno intertextual. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 18 nov. 96, p. 7.
      
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