Intertextualidade, diálogo entre textos
A comunicação estética, ou o fato do homem entrar em contato com o seu
semelhante através de formas artísticas, traz a intertextualidade para o âmbito
das discussões. Tenho diante dos olhos a carta de um leitor com algumas
questões que passam a ser respondidas a respeito da intertextualidade enquanto
fenômeno literário e enquanto fato social mais ou menos comum.
Uma idéia compartilhada por um texto A e por um texto B é uma idéia
intertextual. Portanto, quando usamos a expressão intertextualidade, o fazemos para sublinhar a presença em um texto
daquilo que já pertence a outro texto.
Se alguém costuma nas suas intervenções na imprensa escrita, ou na
televisão, usar com frequência uma frase feita, esta frase se torna facilmente
identificada como dele, como própria do seu texto, ou do seu estilo. Imagine-se
então que uma outra pessoa, visando a um objetivo específico, utilize de modo
consciente, ou até mesmo inconsciente, esta frase já identificada. Ele estará
se valendo do recurso da intertextualidade, quer para ironizar, quer para dar
realce ao assunto, ou para através desta ponte intertextual dizer um pouco mais
do que as suas próprias palavras diriam.
Quando alguém incorpora a fala do outro, mesmo sem fazer referência ao
outro, mas adaptando esta fala aos seus objetivos, está estabelecendo a
intertextualidade. Está utilizando um guarda-roupa de segunda mão, ou pagando
tributo aos outros usuários da língua.
Mas este fenômeno é bem mais significativo na comunicação feita através
de sistemas estéticos, ou das várias artes. O uso da intertextualidade na
linguagem referencial ou informativa deriva talvez da sua inserção, cada vez
maior, na literatura e nas artes.
A sociedade moderna, ao suspeitar da falência de seus alicerces
individualistas, enamora-se. Socializa-se. Como forma de sobrevivência.
Se o indivíduo, com tudo que dele deriva, é o centro cósmico da
sociedade burguesa e da sua forma de arte mais legítima, a arte romântica, o
homem, enquanto indivíduo, é derrocado do seu posto pelas relações sociais que
se instauram em nome da coletividade e de uma sociedade nova, utópica e
realista.
A criação artística, filha do mito, homem público, com a propriedade
privada, mulher fiel ao dono, depois de longos anos longe do pai, e de habitar
a casa materna, volta-se edipianamente para o pai da horda, qual filha pródiga.
Em outras palavras: assim como, nos tempos ancestrais, o homem compartilhava
todos os bens, materiais e espirituais (ou melhor, quase todos), também a
língua, o mito, a poesia, a música e a dança se casavam num rito único,
vislumbrado por Rousseau, na esteira de Vico.
Falar, fabular, poetar, cantar e dançar eram, ao mesmo tempo, uma só
coisa. A fala, fabulosa, era, a um só tempo, música poesia e dança. O amor
coletivo durou um pouco. A separação veio depois.
Enquanto mito e rito, a arte era uma construção coletiva, um grande
sonho repartido e uno, expressão do desejo tribal, onde as vozes e falas se
harmonizavam, às vezes em dissonâncias, fundindo várias vertentes.
Se o texto era de todos, a alteração, a atualização do texto, para dizer
várias verdades em processo se dava no âmbito do próprio texto. Com a sua
transformação em propriedade privada, as palavras não mais pertencem ao vento,
ou à boca de quem por elas é beijado, e a reconstrução do texto implica sempre
num novo texto, não mais inter, mas intratextual, onde o novo emissor se
afirma senhor e dono.
Mas este discurso pessoal e intransferível será sempre um mero retorno
do recalcado: dos discursos ouvidos, enquanto grito para ouvir a voz do dono.
Por isso, para preservar o seu domínio sobre o verbo, o sujeito reconhece a
referência ao verbo do outro.
Em poucas palavras, podemos compreender o conceito de intertextualidade,
de um lado, enquanto fato social e, do outro, enquanto fato da série literária
ou artística determinado pelas relações
sociais.
Este fenômeno pode ser descrito como a ressonância de vozes no texto
literário. Ou como o permanente diálogo mantido pelas obras entre si, ou pelas
diversas manifestações artísticas, onde um texto remete ao universo de outro
texto; e onde uma composição musical evoca outra composição.
Pintura, arquitetura, cinema, teatro, música e literatura são exemplos
de expressões artísticas que não ficaram imunes ao diálogo das obras entre si,
numa cumplicidade aliciante para com o público. A troca de experiências é uma
atitude essencial do homem, também assumida por uma das manifestações mais
complexas do seu espírito: a arte.
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Na Poética, Aristóteles faz a
distinção entre duas espécies de mitos presentes na obra literária: os mitos
tradicionais e os mitos inventados pelos poetas. Para ele não há nenhuma
hierarquização entre estes dois procedimentos estéticos. São igualmente poetas
tanto aqueles que produzem seus próprios mitos, através da fabulação, quanto
aqueles que constróem o reino do verossímil poético sobre mitos já existentes,
fruto do engenho coletivo.
Aristóteles reconhecia que o poder de reciclagem destes mitos num novo
sistema de significações assegura a natureza do texto poético. Daí a
importância que assume para o filósofo a elocução, fundadora de um novo
sentido, um sentido universal sobre o particular. Deste modo, um mito ampliando
os feitos de um rei se torna poesia quando deixa de ser particular, ou seja, de
dizer respeito apenas aos fatos e circunstâncias deste personagem real, situado
e datado, e a partir da verossimilhança se torna universal. Abandona seu
significado original em favor de todo um universo de sentido. O que quer dizer:
aberto, aplicável a outras situações e sujeitos.
Observe-se que, para Aristóteles, mito era tanto o que hoje a
antropologia compreende como tal, quanto era também correspondente a fábula,
história, ou outro nome dado aos motivos da obra. Dizia respeito a uma
narrativa comum a todos os indivíduos, social, portanto; e também à fabulação
de uma narrativa individual.
Instaurava-se, avant la lettre,
desde a antigüidade, a discussão sobre a intertextualidade, embora somente anos
mais tarde os olhos da teoria percebessem o fato teorizado. Somente com um
livro publicado por Bakhtin na década de vinte e descoberto pela inteligentzia
acadêmica nos anos setenta, com a tradução francesa a que todos pudemos ter
acesso, Problèmes de la Poétique de
Dostoievsky, o fenômeno da intertextualidade foi absorvido pelo
"sistema da moda".
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Intertextualidade,
diálogo entre textos. Artigo teórico sobre o fenômeno intertextual. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 18 nov. 96, p. 7.
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