18/11/2015

Bloom

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

A poesia como crítica

O leitor brasileiro passou a ter um contacto mais estreito com o crítico norte-americano Harold Bloom a partir dos artigos republicados pela Folha de São Paulo, embora nos últimos anos seus livros também passassem a frequentar a bibliografia brasileira. A Imago já traduziu A angústia da influência, Cabala e crítica, O Livro de J e Poesia e Repressão.
Um mapa da desleitura dá continuidade à construção do panorama crítico engendrado por Bloom para rever a formação do cânone poético de língua inglesa a partir do estudo da influência exercida pelos poetas eleitos pela tradição.  Ele designa estes autores de poetas fortes, privilegiando o adjetivo forte como elemento de caracterização das mais densas manifestações intelectuais, tanto por parte de um leitor fruidor quanto por parte de um leitor criador.
O ato de leitura, no âmbito da sua teoria crítica, é o eixo central da obra literária: é a partir dele que uma obra ou um autor adquirem permanência e transmigram para outras obras e para outros autores. Ainda de acordo com Harold Bloom, não existem textos mas relações entre textos. A partir de uma leitura ou de um ato crítico é que se dá o que ele chama de desleitura, ou desapropriação. A criação de um poeta é retomada por outro poeta que tem a ambição de corrigi-lo e ampliá-lo.
A propósito, Bloom começa o quinto capítulo do livro, “O mapa da desapropriação”, afirmando que o Novo testamento é uma espécie de tentativa de complementar o antigo, a partir dos pressupostos e crenças daqueles que compõem as novas escrituras. O fato verificado no texto sagrado não difere muito daquele que se dá no texto profano. A luta pelo poder sobre os precursores reafirma estes precursores assim como possibilita a aparição de um novo poeta.
É o que acontece com Milton, tomado pelo autor de Um mapa da desleitura como centro do seu foco crítico. Visto como um épico terciário, cujo ambicioso projeto foi concorrer com a tradição grega, representada por Homero, e com a latina, de Virgílio e Ovídio, Milton insere a língua inglesa nesta forte tradição. “Seu tratamento da alusão é sua defesa altamente individual e original”, coroada com as ambições derradeiras do Paraíso perdido que o levam à tentativa de expansão das Escrituras – segundo Bloom – “sem distorcer a palavra de Deus”.
Um mapa de desleitura contém alguns núcleos ideativos, ora voltados para Freud, ora embebidos na Cabala, tudo isto fortemente vincado à história da inteligência do povo judeu. Mas o núcleo central é o estudo da influência. Um poeta não vê diretamente, mas através da mediação do precursor, conforme demonstra exaustivamente o livro, acompanhando a trajetória da poesia inglesa até os autores norte-americanos atuais.
Entre suas formulações, ele insiste que poemas não são sobre “sujeitos” nem sobre “si mesmos”, são sobre outros poemas, “do mesmo modo que um poeta é uma resposta a outro poeta”.
Observe-se a proposta teórica de Harold Bloom de ver a poesia como um grande diálogo através dos séculos. Um diálogo através do qual um poeta se constitui como tal quando enfrenta os grandes poetas que o antecederam. É a leitura criativa transformada em desleitura, isto é, na constituição de um novo objeto de leitura, que transporta e alimenta a poesia.
A partir daí, Bloom conclui que, através do curso da história literária, “toda poesia se torna necessariamente crítica em verso, bem como toda crítica se torna poesia em prosa.” Todos sabemos que com a consolidação de uma tradição literária, de um cânone, o ato criativo da poesia deixa, cada vez mais, de ser um olhar inaugural, ou um ato absoluto (como o gesto de Deus de criar o universo a partir do nada), para ser um ato crítico que toma por objeto aquilo que o precede. O escritor é o leitor da tradição, o crítico capaz de refazer a obra sobre a qual incide seu julgamento.
Deste modo, a condição de leitor exemplar e de crítico perspicaz é apenas o ponto de partida, o degrau primeiro e mínimo do artista que não foi tragado pelo tempo. A criação ingênua, acrítica e desprovida de poder reflexivo sobre a anterioridade do seu ato distancia-se cada vez mais da poesia.
O Renascimento foi um forte instante de afirmação desta consciência do artista. Lembre-se que aí a intertextualidade, o diálogo com os antepassados, adquire uma importância basilar.
As formulações de Harold Bloom são, de certa forma, uma alternativa de redesignação para os estudos da intertextualidade que ocupam grande parte da teoria literária mais recente. Com isto não quero dizer que a sua contribuição à crítica e a constituição de uma teoria viva e atual não seja relevante. Quero apenas situar este crítico no âmbito de uma tendência geral do fim de século.
A busca de originalidade como modo de afirmação é uma exigência não só para o artista, para o criador, como também para o estudioso. É isto que faz Harold Bloom, ao passar ao largo das formulações mais constantes, dando à sua crítica uma roupagem diferenciada.
A primeira epígrafe do livro é esclarecedora a tal propósito: “Como o vinho é conservado dentro de um jarro, também a Torá está contida em uma roupagem exterior. Tal roupagem é feita de muitas histórias; mas é exigido de nós que rasguemos a roupagem.”
É verdade que esta epígrafe tem outro sentido, muito mais apropriado, mas permita o leitor que, com inocente malícia, ela seja estendida à nomenclatura crítica de Bloom.

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A poesia como crítica. Artigo crítico sobre o livro Um mapa da desleitura, de Harold Bloom. Rio de Janeiro, Imago, 1995. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 9 set. 96, p. 7.