A poesia como
crítica
O
leitor brasileiro passou a ter um contacto mais estreito com o crítico
norte-americano Harold Bloom a partir dos artigos republicados pela Folha
de São Paulo, embora nos últimos anos seus livros também passassem a
frequentar a bibliografia brasileira. A Imago já traduziu A angústia da influência, Cabala e crítica, O Livro de J e Poesia
e Repressão.
Um
mapa da desleitura dá
continuidade à construção do panorama crítico engendrado por Bloom para rever a
formação do cânone poético de língua inglesa a partir do estudo da influência
exercida pelos poetas eleitos pela tradição. Ele designa estes autores de
poetas fortes, privilegiando o adjetivo forte como elemento de caracterização
das mais densas manifestações intelectuais, tanto por parte de um leitor
fruidor quanto por parte de um leitor criador.
O
ato de leitura, no âmbito da sua teoria crítica, é o eixo central da obra
literária: é a partir dele que uma obra ou um autor adquirem permanência e
transmigram para outras obras e para outros autores. Ainda de acordo com Harold
Bloom, não existem textos mas relações entre textos. A partir de
uma leitura ou de um ato crítico é que se dá o que ele chama de desleitura,
ou desapropriação. A criação de um poeta é retomada por outro poeta que tem a
ambição de corrigi-lo e ampliá-lo.
A
propósito, Bloom começa o quinto capítulo do livro, “O mapa da desapropriação”,
afirmando que o Novo testamento é uma espécie de tentativa de
complementar o antigo, a partir dos pressupostos e crenças daqueles que compõem
as novas escrituras. O fato verificado no texto sagrado não difere muito
daquele que se dá no texto profano. A luta pelo poder sobre os precursores
reafirma estes precursores assim como possibilita a aparição de um novo poeta.
É
o que acontece com Milton, tomado pelo autor de Um mapa da desleitura
como centro do seu foco crítico. Visto como um épico terciário, cujo ambicioso
projeto foi concorrer com a tradição grega, representada por Homero, e com a
latina, de Virgílio e Ovídio, Milton insere a língua inglesa nesta forte
tradição. “Seu tratamento da alusão é sua defesa altamente individual e
original”, coroada com as ambições derradeiras do Paraíso perdido que o
levam à tentativa de expansão das Escrituras – segundo Bloom – “sem distorcer a
palavra de Deus”.
Um
mapa de desleitura
contém alguns núcleos ideativos, ora voltados para Freud, ora embebidos na
Cabala, tudo isto fortemente vincado à história da inteligência do povo judeu.
Mas o núcleo central é o estudo da influência. Um poeta não vê diretamente, mas
através da mediação do precursor, conforme demonstra exaustivamente o livro,
acompanhando a trajetória da poesia inglesa até os autores norte-americanos
atuais.
Entre
suas formulações, ele insiste que poemas não são sobre “sujeitos” nem
sobre “si mesmos”, são sobre outros poemas, “do mesmo modo que um poeta é uma
resposta a outro poeta”.
Observe-se
a proposta teórica de Harold Bloom de ver a poesia como um grande diálogo
através dos séculos. Um diálogo através do qual um poeta se constitui como tal
quando enfrenta os grandes poetas que o antecederam. É a leitura
criativa transformada em desleitura, isto é, na constituição de um novo objeto
de leitura, que transporta e alimenta a poesia.
A
partir daí, Bloom conclui que, através do curso da história literária, “toda
poesia se torna necessariamente crítica em verso, bem como toda crítica se
torna poesia em prosa.” Todos sabemos que com a consolidação de uma tradição
literária, de um cânone, o ato criativo da poesia deixa, cada vez mais, de ser
um olhar inaugural, ou um ato absoluto (como o gesto de Deus de criar o
universo a partir do nada), para ser um ato crítico que toma por objeto aquilo
que o precede. O escritor é o leitor da tradição, o crítico capaz de refazer a
obra sobre a qual incide seu julgamento.
Deste
modo, a condição de leitor exemplar e de crítico perspicaz é apenas o ponto de
partida, o degrau primeiro e mínimo do artista que não foi tragado pelo tempo.
A criação ingênua, acrítica e desprovida de poder reflexivo sobre a
anterioridade do seu ato distancia-se cada vez mais da poesia.
O
Renascimento foi um forte instante de afirmação desta consciência do artista.
Lembre-se que aí a intertextualidade, o diálogo com os antepassados, adquire
uma importância basilar.
As
formulações de Harold Bloom são, de certa forma, uma alternativa de
redesignação para os estudos da intertextualidade que ocupam grande parte da
teoria literária mais recente. Com isto não quero dizer que a sua contribuição à
crítica e a constituição de uma teoria viva e atual não seja relevante. Quero
apenas situar este crítico no âmbito de uma tendência geral do fim de século.
A
busca de originalidade como modo de afirmação é uma exigência não só para o
artista, para o criador, como também para o estudioso. É isto que faz Harold
Bloom, ao passar ao largo das formulações mais constantes, dando à sua crítica
uma roupagem diferenciada.
A
primeira epígrafe do livro é esclarecedora a tal propósito: “Como o vinho é
conservado dentro de um jarro, também a Torá está contida em uma roupagem
exterior. Tal roupagem é feita de muitas histórias; mas é exigido de nós que
rasguemos a roupagem.”
É
verdade que esta epígrafe tem outro sentido, muito mais apropriado, mas permita
o leitor que, com inocente malícia, ela seja estendida à nomenclatura crítica
de Bloom.
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A poesia como crítica. Artigo crítico sobre o
livro Um mapa da desleitura, de
Harold Bloom. Rio
de Janeiro, Imago, 1995. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 9 set. 96, p. 7.