15/11/2015

Contos do Rio Grande

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Contos do Rio Grande

             Criador de mitos e de fatos que refletem o espírito do seu povo, Roberto Bittencourt Martins é um ficcionista de inventividade rica e um excelente artífice do texto. O painel narrativo que constitui o livro parte de uma lenda vivenciada pelo povo de uma região de inventos: saído do nada e correndo pelos campos surge um trem fantástico que não precisa de trilhos para seguir sua viagem. Ele para nas estações, ou em qualquer lugar, para recolher enfeitiçadas testemunhas que não mais retornam. As pessoas são atraídas por uma misteriosa força, ou pela curiosidade. Enquando o trem fantasma percorre seu trajeto indefinido, novos acontecimentos são desfiados como estações à margem da estrada.
            O insólito, ou o mito que explica aquilo que o discurso racional não pode explicar, é o elemento que liga a realidadade civil do leitor à realidade das personagens dos pampas do invento. Mas, mesmo assim, cercado de qualidades indispensáveis a um bom escritor, Roberto Bittencourt Martins não fez de Ibiamoré: o trem fantasma o romance que poderia ser. O leitor sai das suas páginas, às vezes grandiosas, com a sensação de algo falho, de uma construção incerta. Ora, oscilando entre a tessitura da novela, ora anunciando o universo romanesco.
            Este livro é a segunda edição da narrativa variada e bem urdida em torno de mitos e fatos do Rio Grande do Sul, recriados ou inventados por um escritor poderoso e senhor do seu ofício. Algumas histórias que constituem este painel foram premiadas em 1979 no Concurso de Contos do Paraná e, mais tarde, o livro foi publicado com o título atual. Nesta segunda edição, é incluído na série Novo Romance, caracterizando a obra como o que ela parece não ser: um romance.

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            Sabemos que o homem pensa e conhece a realidade a partir de classificações. Para conhecer alguma coisa, ele insere os objetos em classes previamente constituídas e aceitas, até que seus limites sejam ampliados ou refeitos. Desta forma, compreendemos os objetos e nos apropriamos deles quando os inserimos em uma das categorias estabelecidas pelo pensamento ou pelo senso comum. O juízo e o gosto são naturalmente condicionados por esta classificação, por este confronto do novo objeto com os demais objetos análogos. Embora esperemos que o novo objeto exista por si mesmo, nosso modo de conhecer procura uma forma que o identifique com outros objetos da mesma classe.
            Este mecanismo cognoscente é transposto dos objetos do mundo dos homens para os objetos do mundo literário. Assim, quando nos deparamos com um texto condicionamos a nossa recepção do mesmo à sua inserção numa classe, numa categoria ou, se preferirem, num gênero. Lemos um poema como sendo um poema e não como uma notícia de jornal. Assim, esperamos encontrar nele certas formas constituídas pela tradição ou certas quebras propostas pela dinâmica do pensamento. O mesmo ocorre com um romance. Quando uma obre nos é apresentada como romance aceitamos os regras do gênero e abandonamos a nossa condição civil e cotidiana para ingressarmos num universo romanesco com suas leis e princípios. Deste modo, toda ruptura se dá dentro de uma certa previsibilidade estrutural. Toda transgressão de uma forma tem por limite a desagregação sem a destruição total das linhas norteadoras desta mesma forma. Um romance tem traços que o diferenciam de uma novela ou de uma grande crônica em torno de um universo ficcional. A leitura pressupõe encontrar no texto elementos que permitam seguir as regras de suas formas, salvo se o conceito de vanguarda do leitor comporta o rompimento de todos os parâmetros de leitura. Aí, convém abandonar a nomenclatura e a classificação do texto num gênero literário conhecido.
            Ao entrarmos num mundo ficcional temos por base as regras deste jogo, sem as quais não há jogo nenhum.

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            Ibiamoré: o trem fantasma começa sugerindo ao leitor que está diante de um romance. Os contos que constituem este conjunto de situações múltiplas buscam, aqui e ali, alguns elos de ligação entre os episódios. É o que acontece, por exemplo, com o universo das narrativas em torno do trem fantasma, depois ampliado para conter narrativas onde está presente um trem qualquer. Outras vezes, o elo é buscado através de referências a personagens de contos anteriores. No meio de um novo conto encontramos como personagem secundário um protagonista do conto anterior. Mas estes pequenos elos entre os mundo de cada uma das narrativas não chega a constituir uma unidade, como ocorre na novela, por exemplo, onde um fio condutor relaciona os episódios. Se a novela encerra uma certa linearidade de ações, o romance é constituido pela pluralidade de situações e tramas que concorrem para o enriquecimento da trama central. Quando uma obra não se tece a partir de tais fios, como ver nela tal tecido? Um conjunto de narrativas, mesmo buscando adquirir uma unididade, pode não constituir um romance, quando seu traçado não se aproxima das linhas gerais da estrutura romanesca. Os contos de Ibiamoré: o trem fantasma continuam sendo contos, alguns da mais densa elaboração, enquanto outras narrativas parecem narizes-de-cera destinados a ligar aquilo que a cera não liga.
            E isto, em vez de acrescentar alguma coisa à qualidade do rico universo ficcional constituído por Roberto Bittencourt Martins, prejudica a sua leitura. Se o leitor conseguir isolar o artifício de construção de um romance a partir de contos às vezes irrelacionados, perceberá estar diante de um vasto e amplo painel narrativo que pode, sem favor nenhum, ser apontado como um dos grandes momentos da ficção gaúcha.
            O poderoso engenho fabulador do nosso autor constrói como elemento ficcional os presumíveis fatos reais que dariam credibilidade ao astuciado. Deste modo tautológico, tudo é ficção nesta epifania ficcional de Roberto Bittencourt Martins. O eixo temático da sua obra é o mito de um trem fantasma correndo pelas coxilhas do Sul, sem seguir os trilhos das estradas, mas percorrendo os escuros da noite. O leitor começa a acreditar, pelo testemunho documental que está diante de uma lenda regional, de um belo mito com traços universais do espírito cognoscente, mas descobre que tanto o mito quanto as testemunhas e seus livros são criação deste ficcionista fabuloso. Até mesmo a lenda do trem fantasma parece ser uma criação extraída do engenho fabulador de Bittencout Martins.
            A maior parte dos contos de Ibiamoré: o trem fantasma são momentos altos da ficção sul-rio-grandense e da ficção brasileira. E este entrelaçado de contos vale pelo romance que não se estruturou.

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Contos do Rio Grande. Artigo crítico sobre o livro Ibiamoré: o trem fantasma, de Roberto Bittencourt Martins. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, 420 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 28 ago. 95, p. 5.

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“Leitura Crítica” é publicada todas as segundas-feiras.
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