Memórias e ficções de um advogado
Muitos leitores manifestam especial interesse pelos
livros de memórias e biografias. Folheando os catálogos das editoras, ou as
listas dos mais vendidos, podemos ver que a ficção perde espaço para estes
gêneros, assim como para o chamado ensaio-reportagem.
Se a partir da primeira metade do século a poesia deixou
de ser lida, o fim de século tem sido pouco generoso para com a prosa de
ficção. Alguns editores manifestam desconfiança pelo conto, alegando ser um
gênero destinado a um pequeno público. Cabe então a pergunta: a literatura
criativa estaria em crise; distanciada do gosto do público?
Enquanto isso, biografias, relatos, memórias e outros
gêneros ocupam cada vez mais as estantes. Os jornalistas deixam as páginas
diárias e descartáveis para escreverem grandes reportagens em forma de livro.
Estaria o trabalho de carpintaria da obra literária
afastando o leitor, mais interessado em textos leves, de estrutura pouco
elaborada e compreensão imediata?
Qualquer resposta interpretativa corre o risco de ser
desmentida pelos fatos e acontecimentos, que ainda definem o panorama no fim do
horizonte fin-de-siècle.
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Diante de tal panorama editorial, novas biografias e
memórias são publicadas. O jornalista e advogado Arnaldo Sampaio acaba de
reunir em livro as lembranças dos seus anos no Rio de Janeiro, na década de
cinquenta.
Seguindo o exemplo de milhares de jovens, ele também
pegou o seu Ita, que vinha do Norte, e foi morar no Rio. Um rapaz que concluía
o curso de colégio e se preparava para entrar na Faculdade de Direito foi
procurar trabalho na Grande Capital. Lá, foi boy numa redação de jornal,
estudante de direito, repórter, advogado, enfim, construiu uma vida como tantos
migrantes da esperança.
Mas Arnaldo Sampaio escreveu as suas memórias vestindo as
roupas da ficção. A trama narrativa começa às cinco horas de uma tarde de
outono, no centro do Rio de Janeiro. Um advogado criminalista assiste à morte
de um velho colega, atropelado no meio da rua. Ao socorrer o conhecido dos
corredores da justiça, recebe uma incumbência, como último pedido do homem à
beira da morte: publicar as suas memórias.
O texto que lemos é, na verdade da ficção, um livro
inédito que foi deixado pelo velho Dr. Magalhães. Seu colega Arnaldo Sampaio
limita-se a editar os originais de uma narrativa em primeira pessoa deixada por
um certo (ou incerto) jornalista e advogado baiano, morto no Rio de Janeiro.
Assim, as histórias se confundem: as memórias de Arnaldo
Sampaio e as ficções do seu protagonista. É este personagem central que nos
conta as previsões de um quiromante, feitas ainda na Bahia. O advinho leu nas
mãos do jovem Magalhães, então balconista de uma livraria de Salvador, as
linhas de uma viagem e de dois acidentes. Dr. Magalhães recorda de como se
mudou para o Rio de Janeiro e de como um acidente mudou a sua vida, conforme
predisse o quiromante. Sobre o último e definitivo acidente, nada é revelado.
Mas nós, os leitores, já o conhecíamos, das primeiras páginas do livro, quando
o manuscrito é confiado a Sampaio.
O que lemos no livro de Arnaldo Sampaio é, portanto, o
livro do seu personagem, o velho advogado baiano conhecido como Dr. Magalhães.
O autor material do livro é apenas alguém que recolheu o manuscrito deixado
pelo morto. A partir deste gancho, muito usado pelos escritores românticos, no
século passado, e retomado pelo gosto popular do século vinte, o autor tece a
sua narrativa com sabor ficcional.
Como relato de um jornalista e advogado, o livro merece a
maior atenção do leitor. Sampaio conta coisas de interesse de quantos militam
na justiça, com a clareza de um profissional da notícia. Ele sabe escrever e
sabe encadear os fatos de forma a prender a atenção do leitor.
Mas como texto de escritor — e é o que parece ambicionar
o livro, ao lançar mãos de tais recursos ficcionais — a perspectiva crítica não
pode ser a mesma. Arnaldo Sampaio mistura o relato, ou a narrativa sobre o
destino de alguns personagens do mundo do crime, com aulas de interpretação do
código penal, quebrando o ritmo do discurso.
A estrutura novelesca da obra começa a se tecer, quando o
protagonista serve de elo de ligação entre episódios contando histórias do
mundo do crime. Quando o livro ganha em importância, o autor faz concessões ao
tom professoral do Dr. Magalhães, interpretando códigos e doutrinas; ou cede ao
relato de anedotas surradas sobre vigaristas e outros tipos da metrópole. Em meio
às lições do velho advogado e os casos conhecidos, o livro cai no lugar comum e
deixa de suscitar interesse enquanto texto literária.
Entenda-se: vejo a obra literária como um texto que
ultrapassa a circunstância de um sujeito e resiste ao tempo e ao desgaste das
leituras mais técnicas, através da coerência interna; do poder de se inscrever
na circunstância de outros sujeitos com outros preferências e outra realidade.
Isso mostra que a experiência da escrita jornalística
precisa ser adicionada ao domínio de uma outra técnica – a do fazer literário –
quando se quer escrever um livro de ficção. No território imprevisível da
literatura, até mesmo um experiente profissional das redações de jornal passa a
ser um aprendiz.
Sabemos que muitos escritores brasileiros associaram seu
domínio da escrita jornalística ao exercício da literatura, mas tiveram que
aprender as regras do novo jogo. José Cândido de Carvalho trabalhou durante
anos a estrutura das suas crônicas de casos e astuciados até produzir um grande
livro, O coronel e o lobisomem. Oto Lara Resende aprimorou seus contos
reescrevendo a cada dia, após serem publicados aqui e ali; deixando-nos, como
legado derradeiro, obras altamente bem cuidadas.
O domínio da escrita, o saber dizer de forma clara e
objetiva é o que faz o jornalista. O reescrever-se, o passar-se a limpo em
busca do quase impossível é o que faz o escritor.
Se sob o ângulo da crítica literária um texto pode
merecer reparos, sob um outro ângulo ele pode merecer louvores. Louve-se então o modo com que
Arnaldo Sampaio reuniu os fatos dignos de ficarem na memória de um
criminalista. Fatos e lições que o velho advogado conta para os novos. Para
aqueles que gostam de aprender com a experiência vivida.
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Memórias e ficções de um
advogado. Artigo crítico sobre o livro Eu
fui advogado criminal, de Arnaldo Sampaio. Salvador, EGBA, 1995,
210 p . Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 4 dez. 95, p. 7.