Literatura de viagem: o
reverso
A chamada literatura de viagem
constituiu importante filão das letras no século XVI, quando homens de educação
formal e algumas luzes de saber que ousavam a aventura marítima escreviam mirabolantes
relatos para contar a sua viagem pelo desconhecido. Os olhos maravilhados pelo
novo, descoberto em terras desconhecidas, viam ainda mais maravilhas. E os
relatos dos viajantes tornavam o mundo recém-descoberto ainda mais fantástico.
Os portugueses produziram páginas inesquecíveis, incluindo a Viagem
trágico-marítima e a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, sendo
esta última uma leitura de grande público até o século passado.
Mas este filão de relatos, ora
produzidos por simples cronistas, ora por ficcionistas nascidos por exigência
da tarefa de dizer o indizível, deixou rastros notáveis na literatura européia.
Escritores criativos tomaram o filão como pretexto de inventos exemplares, como
As viagens de Gulliver ou mesmo Alice no país das maravilhas. A
realidade maravilhosa autorizou a imaginação a passear por lugares inventados.
Agora, quando Portugal e o Brasil se
preparam para comemorar os quinhentos anos do descobrimento, a temática adquire
especial atrativo. A obra de Fernão Mendes Pinto, por exemplo, foi revista
criticamente por um jovem estudioso, o professor Francisco Ferreira de Lima,
que produziu um dos melhores estudos sobre o tema, incluindo-se entre os eruditos
que em Portugal ou em outros países se ocuparam da Peregrinação.
Se o tema vem propiciando estudos e
discussões é natural que também desperte a imaginação criadora. Que cronistas e
viajantes do nosso tempo empreendam uma viagem reversa as viagens do século dos
descobrimentos.
Uma surpresa agradável foi a leitura
de algumas das páginas mais bem concebidas da novela de Remy de Souza O
Degredado: desventuras, aventuras e venturas do primeiro português no Brasil.
Mesmo não sendo um ficcionista, o professor Remy, homem de leituras
diversificadas, propicia momentos de boa diversão num texto que, se mais
trabalhado, seria sem dúvida uma obra de ficção deliciosa.
Sendo ele mesmo um viajante
deslumbrado, que realiza trajeto inverso ao dos europeus do século XVI, também
registra em letra impressa as peripécias das suas descobertas. Há cinco
séculos, os europeus saíam de lá para ampliar os horizontes com as maravilhas
do novo mundo. Hoje, muitos brasileiros vão para lá, também para ampliar
horizontes, no velho mundo. É o reverso da viagem.
Curiosamente, o livro de Remy de
Souza registra este percurso. A escrita de ficção que ele nos apresenta finge
ser uma crônica de achados. O narrador do livro O Degredado é um
tradutor e estudioso da cultura francesa que encontra um antigo manuscrito numa
loja de alfarrábios da Bretanha. É o relato contido neste precioso pergaminho
que vai constituir a trama da novela. Sem recursos para adquirir este autógrafo
de um certo Afonso Ribeiro, degredado deixado por Cabral em Porto Seguro, o
viajante e tradutor faz-se amigo do alfarrabista e consegue copiar trechos do
ambicionado documento.
Ao obter recursos no seu país para
voltar à Bretanha e comprar o manuscrito, o malsucedido investigador descobre
que, neste ínterim, a velha casa de livros foi destruída por um incêndio, desaparecendo
assim o precioso documento. Restou-lhe então, baseado nas anotações que tinha
feito, preparar uma tradução do impreciso relato de Afonso Ribeiro.
Infelizmente este primeiro “motivo”
narrativo, o achamento e a perda do manuscrito, não é explorado como peripécia
viva e central da trama. Preferiu o autor dar a este motivo o simples estatuto
de elemento responsável pela “veracidade” dos acontecimentos, conforme a
tradição dos narradores românticos.
Se ele tivesse ido além do
procedimento dos ficcionistas românticos, isto é, se tivesse usado o pretexto
do achamento do manuscrito como narrativa paralela à narrativa do naufrágio,
constituiria dois eixos narrativos capazes de criar uma tensão e de envolver ainda
mais o leitor. Mas Remy de Souza, apesar de ser um estudioso que percorreu
muitos caminhos, ainda é um quase estreante no mundo da ficção. Bem verdade que
há mais de vinte anos ele publicou um conto que mereceu um instigante comentário
de um leitor do porte de Carlos Drummond de Andrade. “Sururu à Brasileira” é o
título da narrativa, na qual um grupo de militares se fantasiava de
carnavalescos para sufocar um levante contrário ao regime então vigente. Num
momento em que era perigoso ressaltar aspectos hilariantes nos gestos dos
militares, então desprovidos do menor senso de humor, a bem humorada comédia de
enganos escrita por um ex-aluno da Escola Superior de Guerra causou interesse
pelo ambíguo tratamento do tema. Mas o fato de Remy de Souza ser um ficcionista
bissexto torna a sua experiência ainda insuficiente para desenvolver os núcleos
narrativos que concebe, como no caso desta nove de ambicioso enfoque.
Sem dúvida, ele tem dois eixos
interessantíssimos, mas oblitera o primeiro e elege o segundo. Fica reduzido,
portanto, a um único fio narrativo constituinte da sua novela e não de um
romance, como aparece na ficha de classificação do livro.
Enquanto a novela é composta de
episódios centrados num eixo qualquer, o romance é, neste sentido,
“polifônico”. Narrativas diversas confluem para o enriquecimento da narrativa
central, como afluentes que engrossam as águas de um grande rio.
É este o principal reparo que a
crítica pode fazer ao livro de Remy de Souza. Ele, de fato, sabe contar uma
história com certa graça. Alguns capítulos são lidos com vivo interesse, mas o
leitor é frustrado quando, nas últimas páginas o “fôlego” do narrador parece
diminuir progressivamente até expirar, como um náufrago que agoniza na praia.
Desta forma, a narração antes promissora e ambiciosa se torna menos viva. Os
acontecimentos escasseiam, deixando no leitor a sensação de um gesto suspenso
no ar.
Para chegar a um resultado à altura
do tema – os descobrimentos, as maravilhas da literatura de viagem – seria
necessário bem mais trabalho, bem mais elaboração. As poucas páginas de uma
pequenina novela são insuficientes para a potencialidade do material
apresentado neste livro.
Mas vale a pena lê-lo como fonte
para alguma coisa outra. Não se impressione o leitor com os conceitos do autor
postos na boca do narrador nas duas primeiras páginas. As considerações de
ordem pessoal do professor Remy de Souza, a respeito de livros, são um tanto
ingênuas; e o tom conceitual aí assumido entra em choque com a linguagem da
narrativa.
Se o moralista Remy de Souza cedesse
lugar ao narrador comprometido com a narrativa e a hinstória que concebe (e não
com as suas predileções didático-filosóficas) teríamos um resultado bem melhor
porque para fabular e contar uma história ele leva jeito. Aquele jeito de quem
não quer nada e vai dizendo as coisas. É preciso apenas trabalhar este dom e
deixar a inconsciente falar. O superego serve para discursos solenes e
despachos burocráticos. Para a literatura convém dar passagem ao id. Àquilo
que corre solto, como cavalo no pasto.
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Literatura de viagem: o reverso. Artigo crítico
sobre o livro O Degredado, de Remy de
Souza. Novela.
Salvador, EGBA, 1996, 86 p. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 22 jul. 96, p. 7.