15/11/2015

Maldito cotidiano

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Maldições do cotidiano
  
Um traço marcante deste romance de Paulo Wainberg é a prática de repensar, ou de refazer, a linguagem ficcional no âmbito do próprio discurso narrativo. Este ato de rever a linguagem do romance resulta na escolha de uma perspectiva experimental do texto, pondo o leitor em estado de suspeita e apreensão que se desfaz ao longo da obra, quando o envolvimento com a trama promove a familiaridade do inesperado dizer.
O livro é narrado em primeira pessoa, no chamado plural majestático, freqüentemente usado em correspondências burocráticas e em artigos e ensaios, provocando assim o estranhamento do leitor, que se inquieta para descobrir as razões da escolha. Mas é o perpassar da ironia que se fixa como marca deste uso do plural, especialmente pelos acontecimentos que constituem a primeira cena narrada, que é introduzida assim:
– ”Caminhávamos furtivamente por uma das ruas centrais quando assistimos a uma brutal cena de espancamento.”
Este mesmo advérbio, “furtivamente”, é repetido ao longo do livro para adjetivar as incursões do personagem-narrador pelo cotidiano da cidade. Desta cena primeira, nasce a paixão do herói da narrativa por uma personagem que será motivo de algumas peripécias da trama. O espancado era “um bem nutrido menino de quatro anos e o espancador sua encantadora mãe de uns vinte e oito, olhos imensos, coloridos, cabelos revoltos e pernas simplesmente divinas.”
Nesta breve caracterização já se delineia muito da intenção do personagem e dos futuros acontecimentos do livro, embora o leitor fique perplexo, sem saber como se situar. Tal cena aparece a partir do quarto parágrafo, enquanto os anteriores, que abrem o romance, nos recepcionam como se fossem o intróito de uma exposição conceitual. Estes quatro parágrafos iniciais prenunciam um tratado de psicologia social ou de uma incerta teoria do autoconhecimento. Deste modo, entramos no universo ficcional de Paulo Wainberg de maneira tão incerta e confusa quanto o universo psíquico do seu personagem. Os caminhos que percorremos suspendem as nossas diretrizes e quase certezas habituais para instalar um estado de inquietação que nos aproxima do inominado protagonista.
Mesmo em condições de conhecer o personagem e seus labirintos interiores não ficamos sabendo o seu nome. Ele não nos diz; fazendo desfilar, apenas, as suas reflexões; seus gestos de homem comum, marcado pela incomum individualidade das anônimas figuras do cotidiano.
            Na verdade, acompanhando o fio condutor da trajetória do protagonista-narrador de Os malditos vemos desfilar diante dos nossos olhos, como numa viagem a bordo de um trem que percorre paisagens inesperadas, os desencontros humanos, com suas mesquinhas tragédias, seus medos e fantasmas. São universos humanos díspares que aparecem no romance, desde o cotidiano de um ocioso homem comum até os incertos horizontes da família de um perigoso assaltante e latrocida.
            Mas a narrativa cresce à proporção que o fim do livro vai chegando, para ganhar nas últimas páginas as dimensões de uma obra densa e capaz de figurar entre os bons momentos da nossa narrativa de ficção. A ironia, que no início do livro parece conviver com uma pitoresca superficialidade cotidiana, por fim, cede lugar ao destino e à condição do homem. O leitor sai das páginas do romance de Paulo Wainberg gratificado pelo encontro com este tortuoso narrador-protagonista, que fala por si e pelo silêncio do outro.

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            O autor de Os malditos, publicado pela editora Tchê!, de Porto Alegre, é o mesmo Paulo Wainberg de O Carrilhão quebrado, ou de O homem de papel, Conversa de verão e A resposta final. Este gaúcho faz parte de uma geração de romancistas e contistas que transformou Porto Alegre num importante núcleo da ficção brasileira. Se na primeira metade do século a explosão regionalista dos nordestinos marcou definitivamente a literatura brasileira, assim como os momentos posteriores foram ocupados pelo engenho criador dos mineiros, agora Minas cede espaço para o Rio Grande do Sul. Neste Estado acontece muito do que há de ficar como os bons momentos da literatura do Brasil no final do século.
            E o papel desempenhado pelos gaúchos é mais notável ainda quando sabemos que eles constituem não apenas um polo criador da literatura, mas também um significativo polo receptor. O mercado livreiro do Rio Grande do Sul é hoje, proporcionalmente, tão importante quanto o do eixo Rio-São Paulo. Nenhum estado brasileiro, fora do chamado eixo central ou nacional, tem apresentado resultados editoriais tão notáveis. Além de editoras nacionalmente conhecidas como a Mercado Aberto, a L&PM ou a Tchê!, o Instituto Estadual do Livro apresenta um trabalho que suplanta o do – falecido e de saudosa memória – Instituto Nacional do Livro.
            O Rio Grande do Sul é hoje o país dos gaúchos, com um movimento cultural e editorial próprio. Se avaliarmos o que se produz e consome em termos de livros dentro do Estado, chegaremos à surpreendente conclusão de que o Rio Grande do Sul apresenta índices nove vezes superiores ao do Brasil como um todo. Deste modo, comparado ao nosso imenso país tropical, o pequeno Rio Grande tem um desempenho similar ao dos países do primeiro mundo.
            A história da literatura brasileira que hoje se escreve abre um grande capítulo para conter o universo dos pampas e o Porto sempre Alegre das naus da criatividade.

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Maldições do cotidiano. Artigo crítico sobre o livro Os Malditos, de Paulo Wainberg. Porto Alegre, Tchê!, 158 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 14 ago. 95, p. 5.

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