Domação da
palavra
Finalmente
o leitor tem acesso à totalidade da obra poética já publicada de Florisvaldo
Mattos. Seus poemas se encontravam dispersos em livros, plaquetes e antologias,
muitos de tiragem reduzida e parca comercialização. A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior é uma reunião
substanciosa da poesia deste autor da Geração Mapa, que foi cooptado por
Glauber Rocha para o núcleo do que viria a ser um dos movimentos culturais mais
frutíferos do país. Glauber e outros jovens, ao conhecerem a poesia de
Florisvaldo Mattos, identificaram no companheiro, alguns anos mais velho do que
eles, o tradutor das suas aspirações intelectuais pela voz da poesia. Foi com
entusiasmo e admiração que a troupe
glauberiana conquistou o novo aliado.
O
prestígio intelectual tem sido, aliás, uma constante na vida literária deste
autor. Antes do lançamento do seu primeiro livro, Reverdor, de 1965, Florisvaldo Mattos já ocupava um lugar de
destaque no panorama da poesia baiana. Na verdade, Reverdor não marcava uma estréia mas reafirmava uma opção pela
poesia. Nascido em 1932, somente na maturidade decidiu-se a publicar sua
primeira reunião de poemas, quando seu nome já impunha respeito. Lembre-se que
em 1962 ele era incluído na Antologia da
novíssima poesia brasileira, editada pelos Cadernos Brasileiros, no Rio de
Janeiro.
Por
isso, o primeiro livro individual de Florisvaldo Mattos trazia uma seleção rigorosa
e circunscrita a um mesmo tema, o que podia ser entendido como evidência do
completo domínio da poesia pelo autor que ali fazia seu primeiro concerto solo.
Neste bem cuidado livro, com ilustrações de Calasans Neto, ele dizia: “Os
poemas deste livro — escritos de 1955 a 1963 — foram escolhidos pelo autor,
para publicação, tendo em vista uma unidade temática de base agrária.”
Tal
escolha fez com que Florisvaldo passasse a ser visto como um poeta do campo,
não faltando as comparações com o Virgílio das Georgicas e com outros poetas universais. Mas a sua obra obedece a
duas grandes vertentes, esta primeira, onde o elemento telúrico define a
natureza do canto, e uma outra, citadina ou cosmopolita, que amplia e
desenvolve o alcance de uma voz do interior.
Uma
e outra se completam, como as faces de uma mesma folha, constituindo aos olhos
de uns uma unidade que se vislumbra diversa perante outros. Como demonstra a
obra agora reunida, a natureza do canto deste poeta tem de fato a marca da
grei. Água Preta, Uruçuca, Itabuna, enfim, a Nação Grapiúna.
Foi
este vínculo primeiro do poeta com a sua região que deu à sua voz o selo de
compromisso com o Homem. Num momento em que o engajamento partidário foi o caminho
encontrado por muitos escritores e artistas, o engajamento telúrico de
Florisvaldo Mattos traçou a arquitetura do seu humanismo inteiro — sem rótulos
ou partidos.
Hoje,
passadas as águas do tempo de apogeu dos vagões, podemos constatar que a
procura da poesia foi a ambição maior de Florisvaldo Mattos. Não se desviava
deste caminho, mesmo quando o abrigo acolhedor de uma opção partidária apontava
possíveis atalhos.
Aí
a permanência do seu canto, a duração do aroma. Duas estréias literárias de
grande importância marcaram época nos meados dos anos sessenta: a de
Florisvaldo Mattos e a de José Carlos Capinan, meses depois. Capinan surgiu
como um cometa, luminoso e surpreendente. Mas seu canto situado e datado não
mantém o mesmo brilho quando visto por olhos de hoje. O entusiasmo do leitor
permanece mas não se renova. O Capinan dos anos sessenta foi um poeta político,
na acepção partidária, embora seu engajamento não representasse submissão da
poesia ao manifesto. Capinan entrou para a história da poesia brasileira como
representante do engajamento mais criativo e eficaz. Mas sua poesia era situada
e datada.
Ao
contrário de Capinan, Florisvaldo Mattos surgiu com menos impacto e fixou-se
com persistência. O entusiasmo inicial é renovado e ampliado em todos nós
diante da releitura dos poemas dos anos sessenta, agora integrando A Caligrafia do soluço & Poesia Anterior.
Como, talvez inciente, premonitoriamente escrevia em “Duração do Aroma”:
“Não
morrem no campo as flores.
Pacíficas
continuam
arquiteturas
de angústia
dissolvendo-se
no chão
........................
não
morrem no campo as flores:
perduram
construídas”.
O
canto rural de Florisvaldo Mattos transita pelas avenidas urbanas trazendo um
pouco do aroma das colheitas. Não devemos esquecer que, além dos clássicos
cantores da vida no campo, lembrados para compreender a natureza rural da
poesia de Florisvaldo Mattos, ela guarda contraditórias semelhanças com a
engenharia do poema cabralino.
Se
Cabral optou pela secura do sertão pernambucano ou pela luminosa e cortante luz
do verão espanhol, Florisvaldo foi influenciado pela exuberante fertilidade da
mata atlântica e das roças grapiunas. A abundância e a riqueza de folhagens se
fazem adereços adjetivos no discurso poético do baiano, que também cedeu à
sedução da Espanha.
Mas,
ambos, tanto Cabral quanto Florisvaldo, confessam o fascínio exercido pelas
águas de uma mesma fonte: Joaquim Cardozo. Poemas,
de 1947, corrige e empresta o aroma campestre dos cajueiros em flor às
escansões dos versos da Geração de 45. Daí, a domação das pedras em Florisvaldo
Mattos, a busca do verbo de corte suave para dizer, pela via da emoção, através
de um discurso presidido pela razão.
Esta
é a marca da grei. A domação da palavra.
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Domação
da palavra. Artigo crítico sobre o livro A
caligrafia do soluço & Poesia anterior, de Florisvaldo Mattos.
Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado / Copene, 1996, 180 p. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,
15 abr. 96, p. 7.
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