18/11/2015

Palavra

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Domação da palavra

            Finalmente o leitor tem acesso à totalidade da obra poética já publicada de Florisvaldo Mattos. Seus poemas se encontravam dispersos em livros, plaquetes e antologias, muitos de tiragem reduzida e parca comercialização. A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior é uma reunião substanciosa da poesia deste autor da Geração Mapa, que foi cooptado por Glauber Rocha para o núcleo do que viria a ser um dos movimentos culturais mais frutíferos do país. Glauber e outros jovens, ao conhecerem a poesia de Florisvaldo Mattos, identificaram no companheiro, alguns anos mais velho do que eles, o tradutor das suas aspirações intelectuais pela voz da poesia. Foi com entusiasmo e admiração que a troupe glauberiana conquistou o novo aliado.
            O prestígio intelectual tem sido, aliás, uma constante na vida literária deste autor. Antes do lançamento do seu primeiro livro, Reverdor, de 1965, Florisvaldo Mattos já ocupava um lugar de destaque no panorama da poesia baiana. Na verdade, Reverdor não marcava uma estréia mas reafirmava uma opção pela poesia. Nascido em 1932, somente na maturidade decidiu-se a publicar sua primeira reunião de poemas, quando seu nome já impunha respeito. Lembre-se que em 1962 ele era incluído na Antologia da novíssima poesia brasileira, editada pelos Cadernos Brasileiros, no Rio de Janeiro.
            Por isso, o primeiro livro individual de Florisvaldo Mattos trazia uma seleção rigorosa e circunscrita a um mesmo tema, o que podia ser entendido como evidência do completo domínio da poesia pelo autor que ali fazia seu primeiro concerto solo. Neste bem cuidado livro, com ilustrações de Calasans Neto, ele dizia: “Os poemas deste livro — escritos de 1955 a 1963 — foram escolhidos pelo autor, para publicação, tendo em vista uma unidade temática de base agrária.”
            Tal escolha fez com que Florisvaldo passasse a ser visto como um poeta do campo, não faltando as comparações com o Virgílio das Georgicas e com outros poetas universais. Mas a sua obra obedece a duas grandes vertentes, esta primeira, onde o elemento telúrico define a natureza do canto, e uma outra, citadina ou cosmopolita, que amplia e desenvolve o alcance de uma voz do interior.
            Uma e outra se completam, como as faces de uma mesma folha, constituindo aos olhos de uns uma unidade que se vislumbra diversa perante outros. Como demonstra a obra agora reunida, a natureza do canto deste poeta tem de fato a marca da grei. Água Preta, Uruçuca, Itabuna, enfim, a Nação Grapiúna.
            Foi este vínculo primeiro do poeta com a sua região que deu à sua voz o selo de compromisso com o Homem. Num momento em que o engajamento partidário foi o caminho encontrado por muitos escritores e artistas, o engajamento telúrico de Florisvaldo Mattos traçou a arquitetura do seu humanismo inteiro — sem rótulos ou partidos.
            Hoje, passadas as águas do tempo de apogeu dos vagões, podemos constatar que a procura da poesia foi a ambição maior de Florisvaldo Mattos. Não se desviava deste caminho, mesmo quando o abrigo acolhedor de uma opção partidária apontava possíveis atalhos.
            Aí a permanência do seu canto, a duração do aroma. Duas estréias literárias de grande importância marcaram época nos meados dos anos sessenta: a de Florisvaldo Mattos e a de José Carlos Capinan, meses depois. Capinan surgiu como um cometa, luminoso e surpreendente. Mas seu canto situado e datado não mantém o mesmo brilho quando visto por olhos de hoje. O entusiasmo do leitor permanece mas não se renova. O Capinan dos anos sessenta foi um poeta político, na acepção partidária, embora seu engajamento não representasse submissão da poesia ao manifesto. Capinan entrou para a história da poesia brasileira como representante do engajamento mais criativo e eficaz. Mas sua poesia era situada e datada.
            Ao contrário de Capinan, Florisvaldo Mattos surgiu com menos impacto e fixou-se com persistência. O entusiasmo inicial é renovado e ampliado em todos nós diante da releitura dos poemas dos anos sessenta, agora integrando A Caligrafia do soluço & Poesia Anterior. Como, talvez inciente, premonitoriamente escrevia em “Duração do Aroma”:

            “Não morrem no campo as flores.
            Pacíficas continuam
            arquiteturas de angústia
            dissolvendo-se no chão
            ........................
            não morrem no campo as flores:
            perduram construídas”.

            O canto rural de Florisvaldo Mattos transita pelas avenidas urbanas trazendo um pouco do aroma das colheitas. Não devemos esquecer que, além dos clássicos cantores da vida no campo, lembrados para compreender a natureza rural da poesia de Florisvaldo Mattos, ela guarda contraditórias semelhanças com a engenharia do poema cabralino.
            Se Cabral optou pela secura do sertão pernambucano ou pela luminosa e cortante luz do verão espanhol, Florisvaldo foi influenciado pela exuberante fertilidade da mata atlântica e das roças grapiunas. A abundância e a riqueza de folhagens se fazem adereços adjetivos no discurso poético do baiano, que também cedeu à sedução da Espanha.
            Mas, ambos, tanto Cabral quanto Florisvaldo, confessam o fascínio exercido pelas águas de uma mesma fonte: Joaquim Cardozo. Poemas, de 1947, corrige e empresta o aroma campestre dos cajueiros em flor às escansões dos versos da Geração de 45. Daí, a domação das pedras em Florisvaldo Mattos, a busca do verbo de corte suave para dizer, pela via da emoção, através de um discurso presidido pela razão.
            Esta é a marca da grei. A domação da palavra.

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Domação da palavra. Artigo crítico sobre o livro A caligrafia do soluço & Poesia anterior, de Florisvaldo Mattos. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado / Copene, 1996, 180 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 15 abr. 96, p. 7.

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