18/11/2015

Romance

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Romance português
   
  
Mesmo quando a análise
dos dramas sociais ganha destaque, o autor não deixa de se interessar por tudo aquilo que acontece a nível da consciência ou além dela.


            Para a compreensão do conjunto da obra de Fernando Namora ou das relações das vertentes do seu processo criativo com o momento histórico e o movimento literário do seu tempo, a discussão do romance O homem disfarçado continua revestida de capital importância.
            Se aceitarmos a proposta segundo a qual, do ponto de vista diacrônico ou histórico, o Neo-Realismo português se estrutura, em linhas gerais, a partir de três fases, observaremos que a obra de Namora não acompanha, necessariamente, este desenvolvimento de modo contínuo, ou sequencial. Sem se desligar do conjunto de idéias e tendências que constituem o Neo-Realismo, a obra ficcional de Fernando Namora procura seus próprios caminhos e saídas – como, inclusive, o fazem todos os escritores que conseguem se impor para além dos programas e manifestos de um grupo ou de um momento.
            Na divisão tríplice proposta para a trajetória reo-realista, o primeiro momento, iniciado com Gaibéus, de Alves Redol, compreende toda a década de 40, quando tem lugar o que se chama de "realismo sociológico" ou de "humanismo dramático". O segundo momento, marcado por obras fundamentais como Mudança, de Vergílio Ferreira, A sibila, de Agustina Bessa Luís, ou O homem disfarçado de Fernando Namora, tem lugar na década de 50, apesar de alguns livros característicos deste momento terem sido escritos nos fins da década anterior. Por apresentar pontos de contato com o realismo crítico, o realismo psicológico, a fenomenologia e o existencialismo, este momento é identificado como um "realismo contraditório". De acordo com o critério defendido por Nelly Novaes Coelho, a literatura portuguesa, a partir dos anos 60, vai conhecer um "experimentalismo polivalente", onde a consciência do papel da linguagem é fundamental para o processo criativo.
            Consequência dos caminhos próprios tentados pelos escritores neo-realistas e também pelo advento de uma geração posterior ao chamado instante ideológico do Neo-Realismo, esta nova etapa da criatividade enfrenta os desafios propostos pela moderna ciência da linguagem e opera no coração do simbólico, visto como base e fundamento da cultura e da condição humana.
            Tentemos então confrontar este quadro geral com o conjunto da obra romanesca de Fernando Namora (ou, pelo menos, com os livros mais conhecidos), tidos como pontos de referência no conjunto da sua obra.
            Os críticos e historiadores da literatura já dividiram a produção de Namora em três fases, considerando que na primeira o autor ainda estava marcado pela sedução dos dados psicológicos que constituíram a tônica do presencismo subjetivista. Somente com a publicação de Casa da malta, em 1945, Fernando Namora daria provas de um direcionamento da sua obra voltado para o realismo social e o chamado nova humanismo (que, aliás, constituíram o marco fundador do Neo-Realismo). Mas, mesmo nesta fase, quando a análise dos dramas sociais é o ponto de apoio da construção romanesca, o autor não deixa de se interessar por tudo aquilo que acontece a nível da consciência ou além dela, constituindo a zona simbólica do inconsciente, revelado por Freud com a sua descoberta.



  
É com O homem disfarçado que se inicia a obra
da maturidade
de Fernando Namora.



            É precisamente esta tendência inequívoca de Fernando Namora – tendência e agudeza para penetrar no outro lado da face das figuras – que, com O homem disfarçado, em 1957, vai iniciar a terceira etapa da evolução da sua obra.
            Nesta nova fase, ele parece deixar de lado a moda sociológica dos momentos efervescentes da ideologia neo-realista, retornando ao realismo psicológico. No entanto, não se trata de abandonar convicções ou desatrelar a arte do contexto social, porque é aí que ele cristaliza os pontos mais altos do Neo-Realismo, e consegue enfrentar a dimensão psicológica dos personagens (e dos homens), sem cair no psicologismo sistemático que seduziu os escritores de Presença.
            É a partir de O homem disfarçado, ou melhor, é com O homem disfarçado que se inicia a verdadeira obra da maturidade do escritor Fernando Namora; quando o seu talento poético e o seu engenho criativo falam mais alto do que os pressupostos e esquemas dos movimentos literários.
            É por isso mesmo que a obra de Namora não se limita a acompanhar a evolução do movimento neo-realista, mas segue seu próprio rumo, como se pode observar no confronto dos dois quadros aqui expostos.
            Submetendo o talhe neo-realista a um outro manequim que comporta uma profunda análise do homem e da sociedade, permutando a compreensão do social stricto sensu pela compreensão do social lato sensu que envolve, por conseguinte, o individual e o coletivo enquanto formas indissociáveis –, Fernando Namora joga com a história social e a biografia, nos seus contornos psicológicos, construindo assim o mundo romanesco dos seus personagens e situações.
            O homem disfarçado se estrutura a partir da história de João Eduardo, um médico que põe a fortuna como meta maior a ser alcançada, a qualquer custo e por isso mesmo experimenta a náusea do dinheiro fácil e da vida burguesa sem maiores perspectivas de realização além do acúmulo obsessivo de bens materiais.
            Ao construir a trama de O homem disfarçada, o autor inaugura uma nova etapa de sua obra, superando os esquemas e matrizes neo-realistas, quando vê o homem como resultado não apenas das condições econômicas que condicionam a estrutura social, mas quando procura sublinhar a importância dos aspectos psíquicos e individuais como responsáveis pela fisionomia do social.
            Pode-se dizer que, quando o figurino neo-realista procurava realizar uma literatura marxista, consequentemente sublinhando, de forma metonímica, a importância dos dados econômicos, Namora junta a esta preocupação, depois de retirar dela o caráter panfletário, a dimensão freudiana do homem. Se com Marx compreendemos a tirania do capital, com Freud a tirania o inconsciente e o papel da libido são postos em relevo.
            A fase de construção poética da maturidade estilística de Fernando Namora situa o homem a partir da ótica marxista complementada, no seu aspecto subjetivo (que o próprio Engels admitiu que não foi suficientemente explicitada), pelas lentes freudianas. Um, por conseguinte, servindo para assinalar os aspectos não convenientemente analisados pelo outro.
            Mas o texto de Namora não se deixa reduzir a uma ilustração ficcional destas teorias, embora elas constituam verdadeiros sistemas filosóficos – os últimos e mais completos da modernidade. A sua obra literária é consequência de um momento histórico do homem, e do intelectual português, situado e datado, onde Marx e Freud foram incorporados como alicerces científicos da cultura. O homem moderno pensa e age incorporando à sua ideologia aquilo que os dois mestres tomaram como fundamentos das suas obras.
            É por isso mesmo, pelo compromisso com a vida nos seus vários aspectos, que os personagens de Namora não são descarnados do seu tempo e do seu lugar, nem são ingênuas máscaras desprovidas da dimensão inconsciente que nos afirma e contradiz.
            O homem disfarçado já contém as raízes de uma preocupação que dá forma a um dos seus últimos romances, O rio triste, ambos ligados por um elo forte: a marca da escrita exemplar de Fernando Namora, onde o risco do experimento torna novo o conhecido – fazendo com que seja conhecido o novo.

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Romance português. Artigo crítico sobre o livro O homem disfarçado, de Fernando Namora. Lisboa, Bertrand, 1995. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 16 out. 95, p. 5.

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