Criação e saber
Um best
seller sempre é visto com desconfiança pelo leitor mais exigente porque o
gosto da maioria, quase sempre, é discutível. Lembre-se de Paulo Coelho, na
“literatura”, de Mamonas Assassinas, na “música”, e dos dois fernandos, na
política nacional. Mas, às vezes, o senso comum é bom senso.
O
mundo de Sofia é um livro que continua sendo
lido e discutido pelos leitores, agradando a gregos e baianos. A receita
inicial é muito simples: Um ex-professor de filosofia no ensino secundário
deixa a sua carreira para se dedicar à literatura infanto-juvenil. Aproveita
então para escrever um livro de filosofia para os jovens do seu país, a
Noruega. Acontece que este ex-professor de filosofia é, na verdade, um escritor
criativo e de poderoso domínio dos instrumentos da razão, isto é, da técnica.
O resultado é aquilo que estava aí, pedindo para
ser escrito, mas ninguém escreveu.
Um misterioso filósofo começa a mandar bilhetes
e textos de filosofia para uma menina de quinze anos, Sofia. As bem planejadas
aulas de história da filosofia por correspondência agradam a qualquer leitor,
porque conseguem discutir questões complexas através de exemplos simples e
capazes de ser entendidos com facilidade.
Alberto Knox – este é o nome do personagem
filósofo – faz aquilo que os autores contemporâneos de filosofia pedantemente
chamam de vulgarização do saber. Ou melhor, ele faz aquilo que Platão e
Aristóteles faziam: discutir idéias de modo claro e acessível. Aquilo que
muitos filósofos continuaram fazendo até o Iluminismo. Como a maioria dos
pensadores dos séculos dezenove e vinte passou a escrever exclusivamente para
seus pares, os autores dos manuais de difusão do saber também mudaram de tom.
As aulas que Alberto Knox escreve para Sofia
são, ao mesmo tempo, simples e resultantes de uma visão complexa e articulada
da disciplina. Os autores não são vistos isoladamente, como na maioria dos
livros (veja-se, inclusive, os três volumes da História da filosofia ocidental, do filósofo Bertrand Russel).
Onde sempre eram produzidos capítulos estanques,
surgiram elos de uma corrente de pensamento, fazendo com que a história da
filosofia constituísse, por si mesma, um argumento romanesco da humanidade.
Pegando carona neste filão, Jostein Gaarder vai em frente. Por isso, as
trezentas primeiras páginas do livro obedecem a um mesmo ritmo. De um lado, as
aulas de filosofia, do outro lado o ingênuo esconde-esconde de Alberto com
Sofia.
É quando o livro começa a ficar monótono,
parecendo uma grande aula de filosofia romanceada, até que o autor dá o salto
inesperado, tomando as diretrizes do processo de criação, para produzir um
livro surpreendente. Um romance em si. Uma obra literária, de ficção, e não um
simples livro de filosofia para jovens.
O ex-professor do ensino secundário resolveu fazer
uma síntese didática da história da filosofia, desde os pré-socráticos até o
existencialismo de Sartre. Como então transformar este manual de filosofia de
mais de trezentas páginas numa obra literária? Umas outras duzentas e tantas
páginas de pura ficção conseguem ordenar o material e submetê-lo a uma forma
literária. Fantasia e desvario ganham estatuto de realidade quando articulados
pelas teias da razão.
Estamos diante de um excelente romance sobre o
homem e sobre o próprio ato de criação literária. Dois mundos são postos lado a
lado: o mundo dos homens, a realidade humana, e o mundo de Sofia, o mundo dos
personagens de ficção. O entrelaçamento de ficção e realidade, com a
interpenetração dos personagens, se dá na mesma dimensão construída por
Pirandello.
Os personagens de Jostein Gaarder tomam
consciência de que são apenas fruto da imaginação do Major Albert Knag, ao
escrever um livro para sua filha de quinze anos. Juntando as indagações
existenciais do homem às suas próprias indagações, Alberto e Sofia também
perguntam se eles não são personagens de um autor que, por sua vez, é personagem
de ou outro criador.
Nós, leitores, acompanhamos as indagações de
Alberto e Sofia e partilhamos da sua irrealidade real, unidos pelo elo do
absurdo que permeia ficção e realidade.
Mas nada disso seria possível se o autor de O mundo de Sofia não fosse um artista
apolíneo, um criador que usa a sua razão para conferir equilíbrio e
inteligibilidade aos passeios da fantasia. E isso, também é incluído no mundo
ficcional do livro. Questões básicas de criação literária estão presentes na
fala dos personagens. Jostein Gaarder é o melhor crítico de sua obra. Ele não
só discute e justifica, a posteriori, as aulas de filosofia que Alberto
ministra a Sofia, como também discute o lugar do criador no processo de
organização do universo da sua obra.
São três mundos de dimensões e naturezas
diversas que cabem uns dentro dos outros – como estas caixas de mantimentos em
que uma acondiciona a outra, se a de dentro pudesse também acondicionar a de
fora.
Linguagem e metalinguagem se fundem e confundem
para constituir a escrita de O mundo de Sofia. Trocando em miúdos: se os
lingüistas chamam de metalinguagem ao discurso que trata de uma linguagem
qualquer, a teoria e a crítica literária constituem uma linguagem que trata de
uma outra linguagem: a obra.
Jostein Gaarder passeia entre estes dois
registros, não para demonstrar erudição acadêmica, nem para construir um
romance de laboratório, como muitos que constituem o prazer intelectual dos
leitores mais sofisticados.
O que outros autores fazem com artificialidade,
ele faz naturalmente, como um construtor que arma complicados andaimes, para
executar a fachada da casa; e depois desmonta os andaimes, sem deixar
vestígios, fazendo parecer aos olhos despreocupados que tudo aquilo nasceu sem
dificuldade. Naturalmente.
Enquanto o encanto da maior parte das obras que
funde linguagem e metalinguagem, que reúne experiência real e sonhada, reside
na consciência teórica do construtor, todo o trabalho de carpintaria fica à
sombra no livro deste autor norueguês. O encanto fica por conta da fantasia que
põe para dormir – e deixa acordados – meninos grandes e pequenos.
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Criação e saber. Artigo crítico
sobre o livro O mundo de Sofia, de
Jostein Gaarder. Romance da história da filosofia. São Paulo, Companhia das
Letras, 1995, 558 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 5 fev. 96, p. 7.
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