O
livro e o filme
José
Clemente Pozenato é um escritor pouco conhecido do leitor baiano, embora seja
um romancista de notável sucesso. O seu livro O Quatrilho, que no ano passado foi transposto com êxito para o
cinema, já alcançou a 9ª edição. É um destes fenômenos editoriais que ocorrem
no Rio Grande do Sul, estado que tem um mercado leitor próprio e que produz
como se fosse um outro país, concorrendo intelectualmente com o Brasil.
Aos que
costumam associar sucesso de público com qualidade duvidosa, convém chamar
atenção para a técnica precisa e a narrativa irretocável desde prosador
singular, que é uma revelação para seus novos leitores.
Foi como
poeta e depois como ensaísta que Pozenato firmou seu nome nas letras sulinas.
Formado em filosofia, orientou sua pós-graduação para a área da literatura, que
é seu objeto de ensino na Universidade de Caxias do Sul. Premiado por mais de
uma vez com suas investigações sobre a literatura gaúcha, estréia na ficção com
O caso do martelo, uma novela
policial ambientada na zona rural de cultura italiana. Foi na região da serra
gaúcha, ao passar a residir e fazer seus estudos secundários em Caxias do Sul,
que Pozenato mergulhou fundamente no mundo dos emigrantes italianos, que
formavam um país a parte, desconhecendo até mesmo a língua dos “brasileiros”,
como eram tratados os raros indivíduos desta nacionalidade que apareciam por
lá.
É este
apêndice de Brasil que serve de pano de fundo para a ficção de Pozenato, iniciada
com a novela O caso do martelo e afirmada com plenitude nas páginas do
romance O Quatrilho.
Segundo as
palavras de um dos personagens do livro, o padre Giobbe, o quatrilho é um jogo
demoníaco: em cada mão de cartas é procurado um novo parceiro, o que talvez
constitua o seu fascínio. Mas lembra o padre que ele desperta a tentação da
infidelidade quando o fascínio passa do jogo para a vida real; e “o desastre
acontece”.
É
precisamente ao transpor as regras de um jogo apreciado pelos colonos italianos
para a vida dos seus personagens que Pozenato constrói a fascinante trama do
seu romance. Uma trama envolvendo
situações e motivos enredados num
mesmo novelo. Amor, traição, conflitos sociais, preconceitos e anárquica
irreverência são parceiros neste jogo de escrita destinado à sedução do leitor.
A qualidade
do texto de José Clemente Pozenato é afirmada a partir da primeira página da
narrativa, quando a sua técnica de montagem empresta a mais viva dinâmica à
cena inicial: o casamento do desajeitado camponês Ângelo Gardone. Uma fala do
padre serve de pretexto para a descrição e a caracterização do personagem.
Narração e descrição se mesclam numa mesma textura frasal, como contraponto ao
diálogo.
O descrever
sempre constituiu um risco de quebra de ritmo para o texto ficcional. Os
autores procuram contornar este longo deserto antes que o leitor abandone a
travessia. Quem não se lembra das torturantes descrições de José de Alencar
como marca do discurso romântico do autor? A descrição enfadonha e pueril de
Alencar deixou em muita gente uma forte aversão pelo nosso romance romântico.
Os
portugueses também não ficaram atrás no poder de fazer do discurso uma lago
tedioso, embora tenhamos que reconhecer a maestria de Camilo e, especialmente,
a seqüência de cortes cinematográficos que Herculano utiliza para dar à descrição
uma função narrativa. Vê-se, portanto, que mesmo na época do romantismo, alguns
autores encontraram a chave para abrir uma ampla porta destinada a ampliar os
aposentos da descrição.
Mas são
bons escritores que vencem este desafio.
Ressalte-se,
portanto, a elaborada engrenagem da escrita de Pozenato, filiada ao melhor que
há na nossa língua, resultando num texto natural e fluente. A condição de
analista do discurso literário não emperrou a fala deste escritor, mas serviu
para descortinar soluções criativas e vivamente encontradas. Os leitores menos
afeitos às inovações do fazer literário se sentem desconfortados diante dos
escritores que se valem de um arcabouço teórico para buscar novos recursos
expressivos. Quando um estudioso da literatura ou um professor desta área se
volta para a criação, o leitor espera encontrar aqui a ali a presença do
teórico ou as amarraras do andaime. As marcas do projeto falando mais alto do
que o seu resultado.
Evidentemente,
a técnica, a consciência crítica e teórica não são as responsáveis pela
artificialidade de muitas obras, mas a ausência do impulso criador, ou do
talento, se preferirem o termo. Isto mostra que o conhecimento da anatomia da
obra não faz do estudioso um romancista, assim como o conhecimento da anatomia
do corpo não faz do médico um criador de homens. Mas se o criador literário,
aquele que traz em si a sensibilidade e o pendor para o processo de criação,
conhece os instrumentos do seu ofício, o seu percurso será bem largo.
É o que
ocorre com José Clemente Pozenato. O conhecimento da literatura, a observação
do engenho e da arte de um Machado de Assis, por exemplo, um dos seus referenciais
básicos, dão a este narrador as linhas mestras de uma escrita exemplar. A
formação acadêmica não diminui a leveza do texto de Pozenato, porque há nele um
romancista.
O Quatrilho é um livro bom de ler é um
texto bem construído. Quem viu o excelente filme, dirigido por Fábio Barreto,
tem uma pequena mostra do muito que o livro nos oferece. Se no filme, a
caracterização de um ou outro personagem parece demasiadamente esquemática,
típica, isso é devido a necessidade de reduzir o denso universo romanesco a
menos de duas horas de projeção. No livro, os personagens aparecem em toda a
sua riqueza e complexidade. É o caso de Massimo, por exemplo, que no filme
parece um conquistador um tanto cínico, na linha do primo Basílio. Na narrativa
de Pozenato ele é um homem cheio de conflitos e indagações, um personagem denso
e fascinante.
O texto
deste romance traz em si múltiplos caminhos para o cinema. O filme seguiu
apenas alguns, devendo a esta obra algumas seqüências originalmente concebidas
por Pozenato com um ângulo cinematográfico. O autor confessa que “todos esses
movimentos de câmera estão latentes” na sua narrativa. E nós acrescentamos: o
romance, com seu poder de sugestão, é bem mais rico e surpreendente do que o
correto filme de Barreto.
Vale a pena
ser lido. É o que pensam também os milhares de leitores que fizeram o livro
chegar a nova edição, antes de ser popularizado através do cinema. Esta edição
traz ainda vários depoimentos e fotos de cenas das filmagens. Uma edição
memorável marcando o bem sucedido trajeto do livro e a expectativa em torno do
lançamento do filme.
Hoje, ambos
são referências notáveis de público e de crítica. Ambos têm lugar garantido na
história da literatura e do cinema brasileiros.
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O
livro e o filme. Artigo crítico sobre o livro O quatrilho, de José Clemente Pozenato. Romance. Porto Alegre,
Mercado Aberto, 1995, 312 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 12 fev. 96, p. 7.
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publicada às segundas-feiras.
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