Aproximações
entre Literatura e Psicanálise
Fiel cidadão de Atenas – da cultura –, Platão
idealizou uma República e de lá expulsou os poetas. Nos vinguemos dele,
inventando a república dos poetas, dos meninos e dos malucos, onde o chão não
seja o deste mundo, mas a terra que se pisa se confunda com as mãos e o corpo
de um poderoso e imenso gênio das lâmpadas maravilhosas, ainda encontráveis no
desconhecido oriente. Onde os nossos desejos mais fundos e defendidos da luz
possam se materializar, brotando da terra – mãe boa, ou gênio amigo – o objeto
cobiçado.
Mas esta república impossível já existe.
Exploremos suas veredas, levados pelas mãos de Freud. Para ele, as primeiras
manifestações da atividade poética enquanto exercício inventivo ou criação
fantasiosa podem ser procuradas na criança: todo menino ao brincar se conduz
como um poeta, criando um mundo próprio e situando as coisas do seu mundo numa
nova ordem, que lhe seja mais favorável.
Outro ponto de contato entre o jogo da
fantasia infantil e a atividade poética é que o menino leva muito a sério sua
brincadeira; daí, a antítese do brincar não ser a gravidade, mas o que os
outros entendem por realidade.
Apesar da carga de afeto do brincar, toda
criança distingue muito bem a realidade da cultura da realidade da sua
brincadeira, apoiando os objetos e circunstâncias que inventa nas coisas
possíveis e tangíveis do mundo objetivo criado por outro demiurgo. O menino
mistura a areia da sua fantasia com o cimento da realidade cultural, para que o
vento não leve as montanhas inventadas; agindo, portanto, com a malícia ingênua
e eficaz que antecipa a intencionalidade
do poeta, enquanto engenheiro cujo projeto ultrapassa o concreto. Daí a
aproximação proposta pelo criador da psicanálise entre a estrutura do jogo
infantil e a da criação poética: "Ao crescer, as pessoas param de brincar
e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende
a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um
prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas
trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a
formação de um substituto".
Compreendemos com Freud que a arte é uma forma
de prazer substitutivo, tanto para o criador quanto para o fruidor do seu jogo,
onde o desrespeito às regras não causa danos reclamados pela cultura. Mas será
que a arte aceita assumir apenas este papel de protagonista substituto, ou
procura construir seu próprio espaço?
Desde o início do século, com a obra pioneira
de Freud, ou, mais precisamente, desde há quatro séculos antes da Era Cristã,
com Platão e Aristóteles, sabe-se que a fantasia é uma satisfação de desejos ou
uma retificação da realidade não satisfatória. A noção aristotélica de catarse
torna-se o fundamento do método clínico utilizado por Breuer e Freud: a cura
pela fala, ou um tratamento que inicialmente Breuer chamou de «catártico», mas
que Freud preferiu denominar de «psicanalítico».
Não nos afastemos, porém, das fantasias e
devaneios, dos brinquedos do desejo, inesgotáveis fontes, que são, da matéria
bruta processada no engenho da arte. Compreender as propriedades deste material
nos ajuda a compreender um pouco o conteúdo do discurso da arte e a
especificidade da sua expressão, já que ambos os planos, na relação amorosa da
criação poética, preparam o nascimento do texto.
Como as pulsões insatisfeitas são as forças
propulsoras da fantasia, Freud conjecturou que só o homem inteiramente feliz
deixaria de fantasiar. Como há sempre uma fenda, uma ausência, uma falta, ele
compara as fantasias do adulto, seus devaneios e sonhos diurnos, com as
brincadeiras e jogos infantis, observando que se o transgredir a realidade
socialmente compartilhada é motivo de vergonha para o adulto – tanto que prefere
confessar suas culpas que revelar suas fantasias –, a criança não se envergonha
do seu distanciamento e subversão dos códigos do real adulto.
Como este real não é construído pela natureza,
mas pelas circunstâncias de cada cultura, acredito que nada obriga às criaturas
adultas em estado puro, original ou selvagem, a se identificarem com as
máscaras e personagens que cada pessoa veste e encena no espaço de convenção: a
cultura. Quando o pano de boca se abre e inaugura para os indivíduos o palco
iluminado da civilização, as pobres e divididas marionetes gaguejam seu difícil
papel. Somente depois, familiarizados com a presença e os aplausos da platéia,
ou resignados com suas vaias ou sua indiferença, deixam a máscara grudar na
face e esquecem as engrenagens dos escuros bastidores.
Mas se o papel desempenhado não é bem aceito
pela platéia, o ator da cultura questiona seu texto e oscila entre uma máscara
e outra. Procura-se construir um novo personagem, emissor de uma fala que lhe
permita maior ressonância junto aos discursos da cultura. Ou restará ao
personagem a alternativa de rasgar os papéis e dar a palavra ao Outro, que
falará por si mesmo, pelo homem.
Avesso do personagem do teatro, o personagem
da cultura não pode, impunemente, encenar o desejo, guardando as fantasias
insatisfeitas em cofres de atos falhos, ou sepultando o desejo acorrentado, sob
as pedras do sintoma.
Se o menino que brinca consegue transpor as
grades e muros da realidade, o artista reinstaura, na idade adulta, a linguagem
esquecida, recuperando a vitalidade e a liberdade capazes de refazer o real,
desta vez corrigido, estruturado de uma forma mais adequada e acessível à
felicidade clandestina.
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Aproximações
entre literatura e psicanálise. Artigo teórico sobre o ensaio Escritores criativos e devaneio, de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago (Obras Completas, Vol. IX). Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 20 mai. 96, p. 7.
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