A boa literatura da
África
Os escritores dos países africanos conquistaram uma
audiência seleta nas duas últimas décadas. Como contrapartida das guerras e
investidas coloniais, editoras inglesas e francesas criaram coleções destinadas
a reunir as obras mais significativas dos autores do continente. Deste modo, o
interesse pela produção literária de pequenos países da África tornou-se uma
das modas do mundo universitário, um dos kitschs que empolgam
pesquisadores à cata de originalidade. O fenômeno alçou também o Brasil e
Portugal, este último país, responsável pela exploração colonial de algumas
nações africanas, onde hoje se fala o português: Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe.
Umas das vantagens deste modismo acadêmico é que, quando
muita gente começa a estudar as chamadas “literaturas exóticas” (termo abolido
em decorrência da valorização da diferença), elas ganham o interesse da
indústria editorial. Em meio a textos sem maior expressão, além do seu universo
exótico, aparecem obras que merecem ser lidas e conhecidas.
Mia Couto é um destes escritores. Suas obras conquistaram
o mercado português e aportaram no Brasil, onde ele ganhou, o ano passado, o
Prêmio de Melhor Romance Estrangeiro da Associação Paulista de Críticos de
Arte, pelo livro Terra sonâmbula.
Tanto aqui quanto lá, em Portugal, a crítica vem cobrindo
a obra deste escritor moçambicano de elogios. Para José Saramago, estrela maior
das passarelas literárias portuguesas, “Mia Couto trouxe à língua a frescura da
invenção e o contacto com o fantástico caldeirão que ela é quando falada e
escrita por muitas e variadas gentes.” De fato, a invenção lingüística, a luta
com as palavras, constitui o centro nervoso da oficina verbal de Mia Couto.
Fortemente comprometido com o trabalho de extrair novos sentidos das velhas
expressões e, principalmente, de encontrar novas expressões para velhos
sentidos, ele parece querer dialogar com alguns feiticeiros do idioma, como
João Guimarães Rosa, por exemplo.
A forja das novas palavras e a constituição insólita dos
nomes próprios dá curso aos riachinhos de água imprevista que correm da escrita
de Rosa. Mia Couto batiza suas criaturas com nomes como Tristereza, Felizbento
ou Virigílio, todos marcados por um parentesco distante, ou próximo, com personagens
de Guimarães Rosa. O moçambicano estabelece seu diálogo, através das redes da
língua comum, com a tradição literária de uma outra ex-colônia portuguesa, o
Brasil. Se há muito tempo os nossos autores dialogam com a África, agora o
velho continente responde ao diálogo, propondo novas falas, na voz deste jovem
escritor.
Estórias abensonhadas reúne dezesseis contos de
qualidade diversa. Alguns unem uma boa história à oficina de palavras de Mia
Couto. Outros se perdem na simples sedução do discurso pelo discurso. Num
neo-barroquismo conceptista que marca parte da literatura deste fim de século.
É curioso observar como alguns autores que são capazes de produzir um bom
texto, consciente ou inconscientemente, se desobrigam de ter uma boa história
para contar. Cada vez mais a modernidade — ou, conforme os teóricos mais
apressados: a pós-modernidade — faz a viagem circular de retorno, através de um
neo-barroco. O conceptismo ou o engenho da forma mantém a sua primazia.
Mas outros contos de Mia Couto trazem até nós o mundo
renascido no pós-guerra de Moçambique. As esperanças e aflições de um povo
associadas ao saber ancestral e mantido a salvo do invasor europeu. Mitos
fundadores de um cultura e acontecimentos do admirável mundo novo engravidam-se
mutuamente para formar o realismo mágico ou o universo fantástico da narrativa
de ficção de Mia Couto. Quando esta realidade fantástica está enraizada
simultaneamente no chão moçambicano e no gosto literário do nosso tempo, surgem
histórias bem sonhadas e contos bem construídos.
Aos textos de ritmo lento e monótono, onde as peripécias
verbais não são suficientes para encobrir a falta que fazem outras peripécias,
vividas pelos personagens, opõem-se contos que ficam na lembrança do leitor e
convidam à releitura. “Nas águas do tempo”, o primeiro texto do livro, é uma
boa recepção que o autor proporciona aos seus leitores, abrindo o caminho para
o transitar de outras histórias, como as estranhas “Flores de Novidade” ou o
confortante final feliz do Cego Estrelinho.
“Lenda de Namarói” é um dos tantos bons momentos do
livro. Um mito tribal, reinventado pela narrativa em primeira pessoa de uma
mulher, transporta-nos a um tempo mítico em que as mulheres eram as únicas
criaturas humanas do lugar. Da infertilidade de algumas surgiram os primeiros
homens, seres incapazes de se desdobrarem em outros seres.
Esta narrativa ancestral, em tudo oposta aos mitos da
primazia masculina que constituíram a civilização moderna, insere-se no
contexto das diversas narrativas míticas onde o papel da mulher é reinterpretado
por culturas ditas primitivas. Darcy Ribeiro trouxe das suas andanças pelas selvas
do Brasil um mito análogo. Formulações e interpretações do real, como estas,
jogam por terra a “inveja do falo” que Freud põe na base da mentalidade
ocidental, ao fazer suas análises interpretativas. A partir dos nossos mitos de
homens do mundo dito civilizado, a mulher estaria marcada por uma falta, por
uma ausência.
O conto deste escritor africano, desentranhado de antigos
saberes, inverte a polaridade. Ora, este reinventar o olhar, este reinverter os
saberes não é a marca da escrita criativa?
Com Mia Couto vemos o mundo pelas lentas limpas de uma
narrativa que não segue pela estrada principal. Os atalhos, caminhos e veredas
descortinam outras paisagens para os olhos. Basta saber ver.
O que
não é fácil.
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Contos africanos. Artigo crítico sobre o livro Estórias abensonhadas, de Mia Couto. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1996, 136 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 07 out. 96, p. 7.