18/11/2015

Camille Clodel

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Camille Claudel e Rodin
           
            Camille Claudel é, talvez, a primeira mulher a ganhar notoriedade como escultora. Na passagem do século XIX para o XX a escultura ainda era uma atividade reservada aos homens. A simples presença de uma mulher deslocada no estreito contexto da sua época já era motivo de escândalo e punição para a “infratora”. Mas o escândalo não parou aí. Jovem, inteligente e bonita, Camille terminou se envolvendo com o seu mestre, bem mas velho do que ela – Rodin.
            Esta paixão mútua foi bastante útil para o famoso escultor, que contou com a dedicação integral de Camille. Ela muito contribuiu para a consagração do trabalho de Rodin, enquanto o velho mestre se limitou à defesa da sua própria carreira, abandonando a discípula, quando os seus encantos e a sua arte deixaram de ser úteis à cômoda vida do artista em franca ascensão.
            Não esqueçamos que quanto Camille toma Rodin como mestre, ele ainda não havia conquistado a consagração junto ao público. O seu trabalho atingia apenas o círculo dos iniciados. A talentosa discípula teve portanto um papel importante nesta fase da carreira do escultor, que termina por descartá-la quando as conveniências assim o exigiram.
            É isso que podemos ler no livro Camille Claudel: Criação e Loucura, de Liliana Liviano Wahba, uma analista junguiana que constrói uma espécie de psico-biografia da escultora. Ela tenta compreender alguns aspectos da chamada loucura de Camille Claudel, uma mulher que joga todas as cartas no seu amor por Rodin e na sua dedicação pelo artista.
            Casado, Rodin não se sensibilizou diante da forte pressão social exercida sobre a sua jovem amante, submetida a mais de um aborto, à discriminação social e à condenação pela família. Quando ela sucumbe aos fantasmas do mundo interior, alimentados pelo mundo social, as circunstâncias e os fatos concretos são perversamente esquecidos. Todos são unânimes em apontar apenas a evidente paranóia de Camille. Não interessava nem à família nem à ciência mental da época entender a relação provocação-resposta contida no desatino da jovem artista.
            Enclausurada num hospício, Camille foi vítima da estrutura doentia da mãe, esta sim, a fonte de todo desvario. O livro de Liliana Liviano Wahba não trata deste resvalamento de conflitos, muito embora apresente dados bastante significativos para a compreensão do caso Camille Claudel.
            Sabemos que a mãe insistiu em manter a filha prisioneira no hospício, mesmo quando ela superou a crise e se mostrou capaz de reiniciar uma vida fora dos muros da prisão psiquiátrica. As cartas de Camille, relatando a vida no hospital para doentes mentais e a sua consciência de que as pessoas ali confinadas estavam condenadas à morte, são suficientes tanto para sensibilizar qualquer pessoa quanto para demonstrar a conveniência da sua reintegração ao convívio familiar e ao trabalho.
            Camille foi, a rigor, vítima e “porta-voz” não apenas dos fantasmas que corroíam Rodin mas do forte comprometimento psíquico da sua mãe. Apesar de amada pelo velho pai, ela foi rejeitada e hostilizada desde o nascimento pela mãe que, ao assumir o controle da família, sepultou definitivamente a filha.
            De nada valeram as cartas mostrando o tratamento dado aos doentes psiquiátricos. Lúcida e consciente, Camille não encontra interlocução com os demais internos, ao tempo em que sofre o desconforto típico de uma prisão. O objetivo da sua mãe era sepultar para sempre a filha odiada.
            Camille vive a sua juventude e envelhece no hospício. Nem mesmo com a morte da algoz reconquista o direito sobre si mesma. O sempre amado irmão, o escritor Paul Claudel, se omite inteiramente e termina por herdar e assumir o lugar de carcereiro. Aos que imaginam que a sensibilidade é um requisito indispensável ao artista, o exemplo dado por Claudel mostra o quanto o mundo dos homens excluía as mulheres.
            Todos estes fatos servem para assinalar a cumplicidade da psiquiatria da época para com os carrascos da repressão e, ao mesmo tempo, como testemunho do preço pago pelas mulheres que rompiam com as expectativas de uma sociedade que as excluía enquanto seres dotados de razão e sentimento.
            O contexto mental fim do século XIX e início do XX negava à mulher qualquer condição de sujeito. Não apenas o seu desejo era eliminado, como também a sua inteligência era negada. Tal holocausto explica o discurso belicoso do pensamento feminista dos nossos dias, quando o espírito armado tenta expurgar os traumas e cerzir as feridas ainda abertas.
            O caso Camille Claudel nos remete ao de uma outra grande mulher, bem mais próxima da nossa cultura, que viveu a mesma época e foi aniquilada pelas mesmas estruturas: a poetisa portuguesa Florbela Espanca. Em ambas a sociedade falocêntrica puniu o mesmo crime: a ânsia de viver e de ser feliz.

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Camille Claudel e Rodin. Artigo sobre o livro Camille Claudel: Criação e Loucura, de Liliana Liviano Wahba. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1996, 182 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 30 set. 96, p. 7.