O Mito como realidade
do homem
Habitante
de um mundo de prodígios, o homem se vale de narrativas fabulosas para explicar
as coisas e fenômenos que o rodeiam. Todos encantados. As formas ancestrais da
nossa desencantada ciência compreendiam o universo através de um discurso tão
insólito quanto o nosso próprio mundo.
É
por isso que o saber mais sensato não desdenha das várias formas que a consciência
utiliza para ter ciência do mundo. Todas as formas de conhecimento, das mais
primitivas às mais elaboradas, derivadas das anteriores, portanto, são
igualmente eficientes na sua tarefa de traçar os contornos do real.
A
ciência não mais ignora que a mitologia de um povo é um fato decisivo como
marco fundador da realidade; mesmo quando, através de construções fabulosas, os
mitos remetem o observador à perplexidade. É aí, talvez, que surge a oposição
entre as formas conscientes e as formas inconscientes do conhecimento.
Os
rituais míticos dão conta de um conhecimento difuso, ainda não fixado pela
consciência, mas decisivo nas intervenções destinadas à constituição da
realidade – um conhecimento inconsciente, portanto. Já o saber da ciência é a
sistematização do que o homem foi capaz de captar através da consciência.
As
construções do espírito desempenham um papel mais ativo e basilar, no que diz
respeito ao mundo dos homens, do que as obras materiais ou os poderosos
fenômenos da natureza.
A
semiótica, herdeira da tradição que identifica a teoria do conhecimento com a
teoria da linguagem, mostra o quanto somos falados pela nossa língua, isto é, o
quanto somos levados a dizer e a pensar não aquilo que queremos mas aquilo que
somos obrigados a pensar, pela forma do nosso discurso e pelo seu
comprometimento com as circunstâncias que a produziram. Ou ainda, evidencia o
quanto as nossas ações e a nossa ideologia estão determinadas pelos idola
ou pelos signos da constelação humana.
Um
autor do século XVI, o filósofo Francis Bacon, formulou o conceito de idola
como filtros modificadores da realidade oferecida pela natureza. A sua
preocupação com a objetividade do conhecimento teve como consequência radical a
formulação da dúvida da validade de toda a filosofia. A designação proposta
para os condicionamentos impostos ao espírito pelas concepções filosóficas (idola
theatri) parte do seguinte pressuposto: as verdades dos filósofos são como
as verdades apresentadas pelos poetas trágicos ou cômicos no teatro; isto é,
são todas fictícias.
Esboçava-se
a dicotomia anti-sofística destinada a opor o mundo da cultura, da linguagem,
portanto, ao da natureza, predicando o atributo de falsidade ao primeiro e de
verdade ao segundo.
Uma
das grandes lições trazidas, neste campo, para o pensamento do século XX foi a
evidência, demonstrada por Freud, de que os fatos pertencentes à esfera da
realidade psíquica são mais tirânicos para o homem do que os fatos que se
originam na realidade material. Isto porque os fatos materiais, concretos, só
se transformam em fatos humanos quando perpassam a esfera da realidade
psíquica. De certo modo, esta evidência já foi teorizada por Bacon no Novum
Organum, mas com Freud desaparece inteiramente a doutrina valora-tiva. A
cultura não está obrigada a ajustar as suas verdades à verdade da natureza,
como queria o filósofo seiscentista. Transitando dos mitos culturais aos
individuais, Freud faz com que um dos resultados da sua descoberta leve o homem
do século vinte a equiparar a realidade psíquica à realidade material.
O
centro é deslocado, copernicamente, dos fenômenos naturais para os fenômenos humanos
propriamente ditos. Assim como o analista não se interessa pelo que fatualmente
aconteceu, mas pelo que o discurso do analisante anuncia; não são os fatos
efetivamente ocorridos que constituem e determinam a vida psíquica do homem,
mas aquilo que o homem faz destes fatos ou da ausência dos mesmos. Não é um
fato objetivo, ou melhor, um fato real, que é o responsável pelo trauma; mas um
fato imaginário, que redimensiona e reescreve a realidade.
As
disciplinas e ciências mais diversas são obrigadas a repensar continuamente o
conceito de real, abandonando a ideia de uma realidade absoluta dada ao homem,
pronta e imutável, em favor da concepção da realidade como fruto de um acordo
capaz de conferir tal estatuto a um conjunto de fenômenos eleitos como
balizadores do real.
Podemos
chamar a este conjunto de ações e pontos de vista, instituídos e aceitos pela
cultura, ou a esta realidade socialmente construída, de espaço de convenção.
Assim, procuramos sublinhar que se trata de uma eleição, de um contrato social,
que convenciona o que devemos entender por realidade e o que devemos expulsar
dos seus limites para garantir a condição de “normalidade” à nossa percepção do
mundo.
Fechando
o círculo, mesmo falando de outros fatos, retornamos à estrutura do mito.
Objeto eminentemente cultural, o mito interpreta e constrói os objetos
necessários às necessidades e anseios de um grupo cultural.
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O mito como realidade do homem. Ensaio teórico.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 23 set. 96, p. 7.