O Negro no
Literatura Norte-Americana
John
Edgar Wideman foi criado num gueto negro em Pittsburgh e conseguiu ser o
primeiro em sua família a entrar no “mundo dos brancos”: a universidade, uma
vida de classe média, mulheres brancas etc. Foi um bem sucedido estudante de
Oxford e depois professor da Universidade de Massachussets, atividade que vem
compartilhando com a de escritor bem recebido pela grande imprensa norte-americana.
Livros
de contos como The stories of John Edgar
Wideman e romances como Rubem,
este último já traduzido no Brasil, levaram o New York Times a colocar este escritor negro na lista dos nomes de
maior destaque da literatura norte-americana. Com isto, Wideman abriu um espaço
importante para intensificar o trabalho de criação de um painel do negro na
literatura dos Estados Unidos. Um painel traçado a partir da perspectiva do
próprio negro.
Acaso sou o guarda de meu irmão? é um
romance documento ou, se preferirem, uma crônica biográfica da família do
autor. Publicado originalmente com o título de Brothers and Keepers (Irmãos e guardas) foi escrito a partir de
fatos reais que reinseriram o autor no âmbito dos problemas de um gueto negro
num país dividido pelo ódio ou pela intolerância racial.
Quando
em 1975 Robby, o irmão mais novo de Edgar Wideman, foi preso com outros companheiros
de bando por assalto e homicídio, o escritor-personagem foi retirado do seu
distante e confortável exílio no mundo dos bem-sucedidos cidadãos americanos
para retornar às atribulações da comunidade negra. Aí ele assume integralmente
o modo de pensar de um negro americano, com suas angústias, sua frustrações e o
cruel confronto com os preconceitos de uma “sociedade de vencedores”.
Negros,
latinos e estrangeiros de um modo geral são vistos como homens de qualidade
inferior pelo “bom senso” norte-americano. Todos seriam, não só, menos aptos
para a vida social do mundo moderno, como também potenciais delinquentes. Antes
que seja provada a inocência destes cidadãos de segunda classe, são todos
culpados e como tal são tratados.
Para
aqueles que pensam que o preconceito racial dos americanos pode ser comparado
com o do Brasil, convém trazer um dado singular. Aqui o preconceito se
manifesta de modo contraditório e indeciso. Em cidades como Salvador ou Rio de
Janeiro, por exemplo, a primeira com uma população formada por setenta por
cento de negros, o preconceito é uma forma sutil de fugir de si mesmo, de sua
alma de seu espelho. É um conflito no interior do próprio sujeito. Lá, o
preconceito é uma guerra constante, onde o extermínio do adversário é a forma
definitiva de vitória.
Convém
lembrar que há anos atrás até mesmo a ciência norte-americana procurava
legitimar os preconceitos. Quando os americanos substituíram as clássicas
medições do peso e do volume do cérebro para demonstrar a superioridade de
inteligência de uma raça sobre outras, se apossaram dos métodos de avaliação da
inteligência de Binet para produzir obras primas do etnocentrismo.
Em
1913, eles aplicaram nos emigrantes que desembarcavam no porto de Nova York
testes de inteligência — que passou a ser chamada de Q.I. (quoeficiente
intelectual). Confrontando os risonhos cidadãos americanos com os estressados,
famintos e assustados fugitivos das misérias do velho mundo, concluíram que
cerca de oitenta por cento de russos, italianos, húngaros e judeus tinham uma
inteligência ou um Q.I. próximo dos idiotas.
Se
até mesmo os judeus, hoje ocupando lugar de grande prestígio na vida
norte-americana, eram considerados quase idiotas, imaginem os outros povos...
Cercadas
de preconceitos em todos os campos, as minorias vivem experiências dramáticas
nos Estados Unidos. O livro de Edgar Wideman quer ser, ao mesmo tempo, obra
literária e documento de análise e denúncia da segregação do negro.
Como
documento traz dados irrefutáveis, como obra literária divide-se entre bem
engendrados recursos narrativos e cansativos monólogos de
personagens-narradores. Wideman concebe seu romance-documento como um livro que
conta a história de um livro. Assumindo no texto a sua condição de professor
universitário e de escritor bem sucedido junto ao público, o narrador se propõe
a estabelecer um diálogo com o irmão, visando resgatar a sua própria identidade
perdida e ao mesmo tempo aproximar-se daquele irmão distante, através da sua
história de delinquente.
A
narrativa ora é assumida pelo personagem John Edgar Wideman, ora pelo seu irmão
Robby. Apesar deste duplo foco a monotonia se instala quando estas duas
narrativas são muito próximas na linguagem e no ritmo. Falta aquilo que Bakhtin
chamou de dialogismo, isto é, falta uma personalidade de falante, um caráter
distintivo, para cada um destes narradores-personagens. A fala de um e de
outro, pelo menos na tradução brasileira não apresenta diversidade capaz de ser
percebida pelo leitor. São diferenças sutis e insuficientes, fazendo com que,
no livro, um e outro sejam simultaneamente irmãos e guardas.
A
descrição de um cenário, de uma sala, ou de um objeto, interrompe a narrativa
e, pela frequência da contemplação descritiva, anula a ação da trama. O leitor
se vê diante de uma narração estática, quando aspira por um pouco de movimento,
tornando também moroso e sonolento o seu ritmo de leitura. Não é um livro que
se lê de uma só vez, com interesse crescente. Lê-se a intervalos, na esperança
de se ver embalado por uma pulsação mais viva.
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O
negro na literatura norte-americana. Artigo crítico sobre o livro Acaso sou o guarda de meu irmão?, de
John Edgar Wideman. Romance. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, 320 p.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 17 jun. 96, p. 7.
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