Indústria da
Arte
O
grande público conhece O Quatrilho
como filme, mas desconhece o livro de José Clemente Pozenato. Embora em nona
edição, o livro teve boa circulação no Rio Grande do Sul, que é um mercado
autônomo e da maior importância, mas não chegou a ser um best-seller a nível nacional. Mesmo com a indicação do filme
baseado no romance, este não obteve uma divulgação satisfatória. Ao falar do
filme, a grande imprensa do país não deu ênfase à obra literária de Pozenato.
Muitas matérias cinematográficas chegaram a desconhecer o fato do filme se
basear no romance homônimo.
Ao
abortar este assunto, pretende-se mais uma vez chamar atenção do leitor para o
excelente livro, já comentado neste espaço, além de tratar das relações entre
arte e indústria. Evidentemente, o filme não consegue, em pouco menos de duas
horas de projeção, reproduzir todo o mundo interior dos personagens. Obras
distintas e com diferentes linguagens cada uma acentua um aspecto, valorizando
elementos adequados ao público pretendido.
Enquanto
o filme, como espetáculo, dá ênfase a tudo aquilo que pode atrair à primeira
vista, o livro investe no universo dos personagens, retirando da densidade
psíquica de cada um deles o seu poder de comunicação com o leitor.
Tomem-se
como exemplo dois personagens do livro de José Clemente Pozenato: Pierina e Mássimo.
No filme, Pierina ganha uma força, uma determinação que a personagem não tinha,
sendo contagiada pela performance da atriz que a recria, Glória Pires. Já
Mássimo perde em densidade na sua versão cinematográfica. O universo interior
do personagem, suas dúvidas e questionamentos, bem como sua inquietação afetiva
cedem lugar a aspectos mais cênicos. Em pouco mais de duas horas de projeção
não se pode ressaltar tudo aquilo que o autor constrói ao longo de um romance e
que é fermentado pelo tempo de fruição determinado pelo próprio leitor. Na
breve cena em que os futuros amantes se descobrem pelo olhar e pelos gestos,
Mássimo aparece mais como um conquistador e menos como alguém atormentado pelo
drama da existência.
Em
outras palavras, o filme tem um compromisso mais direto com o grande mercado,
com a indústria do sucesso, enquanto o livro mantém firme a sua ligação com as
exigências da tradição literária. Isto não quer dizer que um escritor não pretende
ser lido, mas ele divide esta ambição com os valores impostos pelo horizonte de
expectativas da própria arte literária.
A
propósito, José Clemente Pozenato assina um pequeno e estimulante artigo no
último número do jornal de divulgação da Editora Mercado Aberto com o
provocativo título de “A literatura é um ramo industrial?”, onde chama atenção
para o fato das premonições de Paul Valéry, Walter Benjamim e Aldous Huxley
terem se tornado realidade. Eles apontavam como consequência da era industrial
a exigência de que as manifestações artísticas também fossem industrializadas.
Pozenato
chama atenção para a resistência, ou o pudor, de admitir que este tempo já
chegou também para a literatura. Como a criação literária é vista como algo
quase sagrado, que não pode ser contaminado pelas circunstâncias do homem e da
sua história, submeter este incorruptível objeto às regras impostas aos
produtos industriais seria violar sua identidade.
Deste
modo, muitos escritores se sentem no direito e no dever de lançar suas
mensagens em garrafas perdidas no mar, à espera de um receptor ideal. Muitos
textos, contrariando os pressupostos do circuito comunicativo, não são
dirigidos a ninguém, são monólogos disfarçados de diálogos e narrativas.
Ao
considerar o seu meio, a sua cidade, a sociedade em que vive, como um mero
aglomerado de dessemelhantes, alguns escritores produzem para si mesmos e para
uma entidade imaginária nunca vista nas livrarias, mas bastante conhecida: o
leitor ideal de cada um. Ao preferir a convivência destes fantasmas, tudo
aquilo que está sujo pela poeira do cotidiano é excluído ou tratado com
suspeita. Nesta grande sociedade de poetas mortos, os vivos são vistos com
desdém.
O
trabalho do artista não mais seria o de viver o seu momento e trazer para
dentro dele novas configurações capazes de construir o tempo futuro. Como, para
falar aos homens, é necessário ceder à sua linguagem e aos seus desejos, o
escritor que se julga dotado de qualidades superiores, prefere falar a si mesmo
e ao leitor ideal.
A
incomunicação passa a ser a pedra de toque da literatura de iniciados. Aquele
que aceita o desafio de escrever para o mercado de leitores existente, de ceder
às exigências de um público cada vez menos inteligente e de conseguir, ao mesmo
tempo, ampliar os horizontes deste público, oferecendo aquilo que ele quer e
adicionando novos clarões de entendimento, não é reconhecido como o escritor do
seu tempo. É visto como alguém que cedeu às tentações do mundo.
Umberto
Eco escreveu há cerca de duas décadas um livro chamado Apocalípticos e integrados, onde discute a resistência dos
intelectuais à comunicação de massa. Diante da possibilidade de se integrar a
um tempo que não responde à inteligência dos poucos privilegiados, os gênios
solitários preferem o apocalipse.
Pozenato
formula o problema em termos persuasivos. Para ele o que deve ser resolvido não
é a relação entre criação literária e produção industrial, mas entre obra e
público. Quando um escritor interrompe os seus devaneios em favor do
estabelecimento de um elo entre aquilo que diz e aquilo que é entendido pelo
outro, ele não está necessariamente cedendo à produção industrial, está
estabelecendo um diálogo com o seu público.
—
“Não é a mesma coisa escrever para um punhado de eleitos, de iniciados, ou
escrever para um universo maior de leitores. O que os novos recursos da
indústria proporciona é a possibilidade de ampliar o acesso ao público.
Produzir literatura para este público ampliado não é o mesmo que produzi-la
para satisfação pessoal ou para um público restrito de especialistas. Imagino
que nenhum escritor tem dúvidas de que deve atender ao grande público.”
É
este desafio que o autor de O Quatrilho
enfrenta, tendo respondido a ele com dignidade e criatividade, ao escrever um
livro capaz de empolgar às massas pela sua trama e de repor de forma pessoal e
viva as inquietações do espírito.
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Indústria
da arte. Artigo sobre as relações entre arte literária e produção industrial, a
propósito do livro O Quatrilho, de
José Clemente Pozenato. Romance. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, 310 p. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 10 jun. 96, p. 7.
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