LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas
Um narrador
clássico
Rebanho do ódio junta-se a Pareceres do tempo para reafirmar a
qualidade da escrita de Herberto Sales.
Sabe-se que
é na maturidade que alguns autores retomam as linhas constelares da sua
escrita, deixando de lado os experimentos incipientes e aprofundando aquilo que
marca a qualidade do texto. É esta maturidade literária que confere ao novo
romance de Herberto Sales o poder de segurar o leitor por todas as páginas da
narrativa, mantendo vivo o seu interesse por todos os momentos, mesmo aqueles
em que o narrador usa a trama para firmar suas observações reflexivas. Isto
porque um autor maduro e senhor do seu ofício não precisa inserir na narrativa
observações paralelas. Ele sabe fazer brotar do próprio contexto ficcional
aquilo que os aprendizes de feiticeiro expõem como conceitos pessoais.
É por isso
que, mesmo exorcizando ressentimentos, “para entrar de coração aliviado e limpo
na eternidade”, o romance Rebanho do ódio
não tem nada de escrita proselitista. É ficção no seu pleno sentido, com todo o
encantamento que a criação de mundos paralelos pode nos dar.
Desde o
lançamento do seu primeiro livro que Herberto Sales se tornou respeitado como
uma das vozes mais significativas da nossa literatura. Cascalho, de 1944, segundo observação da crítica da época, vinha
completar o quadro do romance regionalista brasileiro. Sérgio Milliet, a
propósito da terceira edição deste livro, colocava o romance da região
diamantina ao lado de obras que traçaram o perfil “realista do colonialismo
econômico brasileiro, tal qual os romances da cana e do cacau, os da seca e do
cangaço, de José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queirós”.
Na esteira
da constatação de que a literatura brasileira incorporara o nome de um autor de
excepcional qualidade, o romance seguinte de Herberto Sales, Além dos marimbus, recebeu dois grandes
prêmios. Mas foi com as reedições de Cascalho, nas quais o livro era
retrabalhado de forma a polir o diamante, e, especialmente, com o romance Dados biográficos do finado Marcelino
que este baiano de Andaraí se afirmou como um clássico da atualidade.
Herberto
filia o talhe da sua narrativa a uma vertente que vem desde Machado de Assis e
passa pela admirável precisão de Graciliano Ramos, se é que se pode tentar uma
analogia de vozes sem esquecer a natureza própria de cada um destes escritores
tão diferentes entre si.
Em Rebanho do ódio a ação é situada em São
Pedro da Aldeia, na chamada região dos lagos do Rio de Janeiro,
coincidentemente onde o autor adquiriu a sua quinta, na tranqüilidade dos
velhos sítios de antanho, e sempre se refugia para escrever. Se o primeiro
livro teve por espaço da ação as lavras diamantinas, onde o jovem Herberto
viveu a realidade do cascalho bruto, a vida urbana do jornalista, do homem de
cultura e dos corredores de organismos de difusão do livro pintou a paisagem
para muitas obras desde autor que transforma em ficção aquilo que existe ou
podia existir. Fiel ao realismo dos anos da juventude, neste livro da
maturidade Herberto Sales vai buscar no emaranhado ninho de amor e ódio das
relações familiares a matéria para a sua criação romanesca.
História de
uma família, onde a ambição e os interesses pessoais sobrepujam os laços de
sangue e afeto, Rebanho do ódio
desvenda os embaraços do espólio de um rico fazendeiro e as ambições dos seus
herdeiros, descobrindo o veio de ódio que se esconde por entre os arrulhos do
amor familiar.
Na pena
deste escritor, a história narrada e o discurso literário se fundem com tal
naturalidade que dispensam toda e qualquer tentativa de acrescentar à fluidez
do texto pequenos ditos, adendos ou tiques sugeridos pela atualização
estilística do autor. É por isso que Rebanho
do ódio apresenta uma escrita mais límpida e conseqüentemente superior à de
algumas obras produzidas pelo autor por volta dos anos setenta e oitenta.
Se há o que
ser trabalhado no texto de Herberto Sales, não é no sentido de acréscimos e
descobertas, mas no sentido de polir a pedra, aparar relevos, cortar aquilo que
parece redundante ou destoante numa sintaxe clara de luz. Muitas vezes, o
caráter parentético de algumas falas, ao invés de ampliar o sentido do que é
dito, turva ou embaça a transparência da linguagem.
Do mesmo
modo, a redundância ou a repetição, que às vezes aflora nas quinhentas páginas
deste romance, interrompe, por breves instantes, a leveza do discurso. Discurso
tão fluente que o leitor chega ao fim do volume saboreando as páginas que ainda
não foram lidas, como se quisesse prolongar o prazer do texto.
Como
Herberto Sales é um clássico do romance brasileiro do nosso tempo, o que nós,
seus leitores, esperamos dele é que sua escrita possa cada vez mais projetar o
foco de luz da linguagem sobre os obscuros caminhos das idéias e sentimentos.
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Um
narrador clássico. Artigo crítico sobre o livro Rebanho do ódio, de Herberto Sales. Rebanho do ódio. Romance. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1995, 502 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 25 set. 95, p. 5.
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