Jorge Amado em Quadrinhos
Capitães
de areia, de Jorge Amado, é um livro que apresenta evidentes traços da literatura
engajada, segundo o gosto da intelectualidade vinculada ao velho Partido Comunista.
Somente na maturidade literária, o autor se liberta das concessões partidários
e enfrenta o desafio do “romance burguês”, depreciado pelos mais sisudos
pensadores de esquerda.
Como a inventividade de um artista
não se submete aos modelos do figurino, este livro, tanto quanto os romances
produzidos décadas depois, mantém-se vivo menos por cumprir um programa
ideológico e mais pelo poder criativo de Jorge Amado, ao contar as suas
histórias cheias de fé no destino do homem.
Relendo agora Capitães de areia com os olhos voltados para o século XXI (e a
lembrança do recente aniquilamento dos focos de oposição ao absolutismo
capitalista), o que fica é a sincera crença de Jorge Amado numa humanidade com
menos ódio e mais disposição para defender a justiça social.
Com as armas da ficção, o velho
romancista quer dar voz ao silêncio dos que foram impedidos de falar,
estabelecendo, assim, o diálogo possível. Eis a ambição do ficcionista: a
síntese. O confronto do diversidade e a sua fusão num diálogo de contrastes. Não
ver apenas um lado da medalha é o que quer o olhar deste criador de realidades,
na sua tinhosa obstinação de domar contrastes. Onde o escuro não permite vez,
ele projeta um foco de luz. Onde a luminosidade cega, ele cerra cortinas ou
propõe lentes escuras.
Quase todas as linhas escritas por
Jorge Amado confluem numa só direção, onde se inscreve a fábula da vitória do
bem sobre o mal.
É esta crença um pouco infantil e
este desdenhar do mal, lembrando a onipotência do adolescente diante dos
perigos, que aproxima o texto de Jorge Amado do público jovem e dos leitores
mais simples. Do homem do povo.
A lógica do narrador amadiano não é
a lógica cartesiana perseguida pela razão dos intelectuais. É a lógica da
fábula, conforme percebeu Guimarães Rosa, ao analisar o chamado engajamento da
obra de Jorge Amado. É a lógica do sonho e da fantasia.
Um dado concreto: os adolescentes
alemães de hoje passaram a se interessar pelo problema do menor abandonado no
Brasil, após a leitura de Capitães de
areia. O fio do novelo foi buscado numa pesquisa empreendida por Tânia Figueiredo,
professora do curso de publicidade da Universidade Católica e mestranda em
Letras da UFBA. Ela interrompeu as disciplinas do seu Mestrado (o que lhe valeu
o desligamento do curso) e viajou para a Alemanha, onde acompanhou de perto a
recepção da obra de Jorge Amado pelos adolescentes e a preocupação com o menor
abandonado.
Um romance escrito anos atrás atua
sobre uma realidade cada vez mais atual.
Coincidentemente, como se a mão do
acaso fechasse os elos de uma corrente, um desenhista baiano (também de
publicidade) trancou-se em casa e, solitariamente, durante meses, recriou os
personagens de Capitães de areia em
quadrinhos. Juntou duas antigas aventuras, a de leitor de gibis e a de leitor
de Jorge Amado.
De forma artesanal, sem ajuda de
computadores nem de outros desenhistas, Ruy Trindade criou um rosto para os
capitães de areia, para cada um dos meninos de rua de ontem e de hoje. E deste
esforço individual nasceu o livro.
Trata-se de uma iniciativa
importante porque, em vez de adaptar uma obra literária para a linguagem dos
quadrinhos, Ruy Trindade respeitou a integridade do texto literário,
adicionando a este as figuras e sugestões de movimentos dos quadrinhos.
É verdade que, às vezes, a página
fica demasiadamente atulhada de texto, quebrando o ritmo habitual dos
quadrinhos mas, superado este obstáculo, o leitor entra num novo mundo, o mundo
do romance de Jorge Amado e o mundo das caras e gestos de Ruy Trindade.
Se este livro não se encaixa no
perfil das coloridas revistas em quadrinhos, ele vem a preencher um outro
espaço: criar na escola uma ponte entre a literatura e os hábitos de leitura
dos meninos e meninas.
Convém ao co-autor (Ruy Trindade),
que é o editor deste livro, ou ao seu distribuidor, fazer um trabalho de
divulgação junto aos professores de português dos bons colégios da cidade. A
adoção de Capitães de areia em
quadrinhos agradará, sem dúvida, aos estudantes, como assegurará um mercado
para este tipo de trabalho. A partir daí, os caminhos se abrirão naturalmente
para o livro de Ruy Trindade, o mais novo ilustrador de Jorge Amado.
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Jorge
Amado em quadrinhos. Artigo crítico sobre o livro Capitães de areia, de Jorge Amado, com desenhos em quadrinhos por
Ruy Trindade. Salvador, 1995, 180 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 18 dez. 95, p. 7.
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