Miguel Torga no
Brasil
O grande público leitor
brasileiro sempre se viu privado da obra de Torga que, em vida, editava
e distribuía seus livros
por conta própria.
— “Desço
aos infernos, a descer em mim. Mas agora o meu canto não perfura o coração da
morte” — são palavras de abertura de
um dos poemas de Orfeu Rebelde, de
Miguel Torga, o grande escritor português morto recentemente, aos oitenta e
sete anos de idade. Autor de cerca de uma centena de livros, incluindo-se
poesia, conto, romance, teatro, ensaio e memória. Somente o Diário de Miguel Torga chega a quase
vinte volumes, tendo o primeiro volume sido publicado em 1941 e já atingido
oito edições.
Nascido a 12 de agosto de 1907, na
aldeia de São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, Adolfo Rocha (nome civil de
Torga) viveu uma infância humilde na zona rural e veio para o Brasil aos treze
anos, trabalhando numa fazenda em Minas Gerais como apanhador de café,
destocador de pastos, vaqueiro e caçador de cobras. Diante das dificuldades
enfrentadas como emigrante, retornou a Portugal cinco anos depois.
A inteligência e a força de vontade
de Adolfo Rocha possibilitaram que o trabalhador rural que retornou do Brasil
aos dezoito anos de idade, publicasse seu primeiro livro apenas três anos
depois, cuja poesia viria a merecer, em 1930, a apreciação de Fernando Pessoa,
numa longa carta. Formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, Adolfo
Rocha estabeleceu-se como otorrinolaringologista nesta cidade, em 1941,
exercendo a especialidade por cerca de quarenta anos.
Apesar da sua obra numerosa e
variada, creio que é no gênero conto que Miguel Torga dá o melhor de si. Ele é
sem dúvida o maior contista português de todos os tempos. Se o conto surgiu em
Portugal na Idade Média, quando os escrivães dos Livros das Linhagens procuravam usar a imaginação para conferir
maior interesse às narrativas sobre a vida dos senhores feudais, este gênero
ganhou maturidade no século XIX. Os românticos e os realistas impuseram o conto
junto ao gosto do público português. Camilo, Herculano, Rabelo da Silva e Eça
de Queirós foram alguns dos expoentes do gênero. Mas enquanto Camilo e Eça
tornaram-se mestres da novela e do romance, Torga fez-se mestre do conto.
Os fatos mais insólitos
e aparentemente criados pela
fantasia são,
na verdade,
reconstituições de experiências vividas.
Bichos,
de 1940, é seu primeiro livro de contos, do qual já foram feitas dezenove
edições. No ano seguinte publicou Contos da montanha, inicialmente
editado no Brasil. Em seguida Torga resolveu ele mesmo ser o seu próprio
editor, iniciando assim a publicação da sua obra, com cerca de cem volumes,
todos impressos nas oficinas da Gráfica de Coimbra. O autor passou a editar e
distribuir os seus livros; e embora até hoje sigam o mesmo estilo artesanal da
primeira metade do século, todos alcançaram muitas reedições. Enquanto isso, os
Contos da montanha ficaram
desterrados no Brasil, segundo expressão do próprio Miguel Torga que, para
compensar, publicou, em 1944, Novos
contos da montanha.
É na temática alimentada pelo rico
universo humano de Trás-os-Montes que ele alcança maior densidade.
Curiosamente, sua ficção é construída a partir de pedaços vivos da realidade
agreste da sua região natal. Os fatos mais insólitos e aparentemente criados
pela fantasia são, na verdade, reconstituições de experiências vividas.
Tive a feliz oportunidade de
constatar que alguns dos episódios que compõem seus contos foram vividos ao
lado de amigos, conhecidos ou companheiros de caça, uma das paixões do homem
Adolfo Rocha. Através do inesquecível comendador Antonio Carvalho de Araújo,
figura maior da comunidade portuguesa na Bahia, precocemente desaparecida,
conheci o filho da dona do restaurante “A Portuguesa”, que ainda hoje funciona
num velho casarão da Avenida Sete. Este português da Bahia costumava ir todos
os anos a Portugal para caçar com um velho médico que conhecera quando ainda
era menino: o médico se chamava Adolfo Rocha. Alguns episódios lembrados pelo
companheiro de caça de Miguel Torga estão transfigurados ou recriados aqui e
ali. Vemos, portanto, como a observação atenta do caçador e a vivência do
antigo trabalhador rural ganham dimensão artística na escrita mágica dos seus
contos, simultaneamente reais e fabulosos.
O grande público leitor brasileiro
sempre se viu privado da obra de Torga que, em vida, editava e distribuía seus
livros por conta própria. Após a sua morte, a família acaba de assinar contrato
com a Nova Aguillar para a publicação da obra completo desta figura exponencial
da literatura portuguesa em volume com capa de couro e papel bíblia.
Espera-se que, paralelamente, seus
vários livros sejam publicados em brochura, atendendo a um público mais
diversificado e numeroso.
Para começar a falar da morte de
Torga, iniciei o texto com os versos de abertura de Orfeu Rebelde e,
para terminar, acrescento os versos finais, sobre o terrível destino do homem
enquanto ser finito.
“E entro finalmente
No reino tenebroso
Das minhas trevas.
Quebra-se a lira,
Cessa a melodia;
E um medo triste, de
vergonha e assombro,
Gela-me o sangue, rio sem
nascente,
Onde o céu, lá do alto,
se reflete,
Inútil como a paz que me
promete.”
_______________________________
Miguel Torga no Brasil. Artigo
crítico sobre o livro Obras Completas,
de Miguel Torga. Rio de Janeiro, Nova Aguillar. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 13 nov. 95,
p. 5.
* * *
Correspondências para
esta coluna:
Rua Dr. Alberto
Pondé, 147 / 103, Ed. Pedras da Colina
CEP 40.280-630,
Salvador, Ba. Fone 351-8971.